Faz 90 anos no dia 25 de abril e há 50 anos chegou-lhe pela rádio o melhor presente de aniversário que recebeu em nove décadas, já depois de ter estado preso em várias cadeias do Estado Novo. “Nunca tive melhor presente”, acentua, ao NC, Manuel Quinteiro Gomes, nascido e criado no Casal da Serra, Tortosendo.
Havia os que nasceram com privilégios, os que, também não tendo uma boa condição, tinham algum cargo de chefia nas fábricas e muitos acabavam por adotar posturas autoritárias, comportamentos para sujeitar os restantes à submissão, e a maioria da população, trabalhadores dos lanifícios, viviam na miséria.
Filho de pai operário e mãe doméstica, Manuel não sabe quando começou a ganhar consciência de classe, mas as condições indignas com que quase todos tinham de lidar sempre o incomodaram. “Se calhar, já nasci comunista”, diz. Quando, na década de 50, foi abordado por um camarada na fábrica, para o sensibilizar para a necessidade de os trabalhadores se organizarem e reivindicarem melhores condições de vida, quando muitos patrões ostentavam uma vida faustosa, já estava convencido.
Começou a receber e distribuir “a imprensa” clandestina, a “contribuir para o esclarecimento dos outros”, a envolver-se no comité local “do partido”, com grande implantação na então “vila vermelha”. Por altura do Natal de 1963 foram sendo presos vários militantes, um deles camarada na mesma fábrica, e Manuel Quinteiro, então com 29 anos, já esperava o pior. Planeou fugir, mas um grande nevão fez adiar o dia de atravessar a fronteira a salto e foi detido na Sociedade de Lanifícios do Tortosendo, com o dinheiro para o passador na carteira. Pediu a um primo que lhe guardasse os cartões da mulher, doente, para que fosse ao médico, e através desse expediente salvaguardou alguns documentos.
A GNR levou-o para o posto e, à noite, foi metido com outros numa carrinha para Lisboa. O objetivo era desmembrar a organização comunista na região, que ficou muito debilitada. Na sede da PIDE foi sujeito à tortura do sono. Alucinava. Os nós da madeira “pareciam bichos a andar”.
Lúcido, com um pensamento estruturado e discurso escorreito, utiliza o humor para não responder aos pormenores sobre o período na prisão. Insiste-se e deflete. Nova tentativa e comenta que aquelas são circunstâncias extremas e houve quem tivesse passado muito pior. “Tinham sido presos outros, eles já lá tinham todos os elementos necessários. Era confessar ou levar até dizer sim. Eu não tive os piores momentos”, frisa. “Não penso nesses momentos, porque são para esquecer”, acrescenta, com a certeza de que lhe continuam a ocupar a mente.
Ser comunista era crime e passou pelo Aljube, Caxias, Hospital Prisional São João de Deus e Forte de Peniche. Foi julgado num tribunal plenário no Porto, com sentença definida previamente “num julgamento fantoche”, com juízes “ao serviço da PIDE”. Foi condenado a 18 meses, esteve preso 38. Uma arbitrariedade como tantas outras.
“Ali atinge-se uma saturação em que deixamos de ser gente, de ser gente pensante”, comenta. Com a mulher doente e dois filhos, de seis e nove anos, a maior preocupação era a família. Emociona-se. A voz fica trémula. Leva à cara a mão direita, onde faltam os dedos médio e anelar, perdidos ainda adolescente numa prensa na fábrica, quando era ajudante de máquina, desde os 12. Tinha avós que ajudavam, mas “também viviam na miséria”. Valeu-lhes o casal de professores dos filhos, que os acarinhou e apoiou, e a solidariedade dos restantes operários, que retiravam uma parte do seu salário para ajudar a família dos que eram presos. Uma quotização em que Manuel participava e de que veio a beneficiar. “Quem semeia, também colhe”, sintetiza.
Os meios e as distâncias não eram as mesmas de hoje. As visitas, quando permitidas, eram um grande encargo financeiro e logístico. A voz some-se e as lágrimas voltam a assomar-se aos olhos de Manuel Quinteiro, apoiado numa bengala preta, quando menciona os 11 meses sem qualquer visita, em Peniche.
Na prisão os comunistas deparavam-se com a arrogância e o desprezo. Mas podia ser também uma escola “para se ficar mais consciente da situação”. Era também uma forma de se abstrair das preocupações e de se evadir das celas exíguas. “Eu sabia viver na prisão. Passava todas as horas disponíveis a ler e a escrever, para me esquecer do que se passava”, conta. Aprendeu com outros presos e saiu da prisão a ler e a falar francês. Tinha feito a terceira classe em criança, a quarta aos 24 anos e acabou mais tarde por completar o segundo ano de liceu.
Ficou sem o antigo emprego e disseram-lhe que dificilmente arranjaria, mas, com a intervenção de um outro militante, foi trabalhar como pesa-drogas na Fábrica Alçada, funções que desempenharia durante 14 anos. Manteve a ação política, mas sem se expor, com maior discrição, porque “não podia dar nas vistas”.
A repressão de um regime que não permitia o direito à greve, que considerava qualquer posição divergente delito de opinião, que prendia, oprimia, era sufocante, mas o que mais incomodava Manuel era encontrar resistência daqueles que queriam defender, “que não compreendiam a nossa situação e alguns ainda criticavam o que fazíamos por necessidade de progresso”, lamenta. “Não o faziam por maldade, mas por ignorância”, analisa.
Quando, através do rádio que se ouvia do escritório da fábrica, foi acompanhando a evolução dos acontecimentos em Lisboa, sentiu que tinha chegado um novo dia. “Nem imagina a satisfação”, enfatiza o casalense, para quem o momento foi uma surpresa, mas não total, porque lhe tinha chegado a informação de que algo podia estar prestes a acontecer.
O 25 de abril é dia de aniversário, mas também de festa popular, em que participa. Olha para a revolução como um compromisso com “uma sociedade livre, amiga, saudável, solidária”. Um legado “para todos nós” que quer passar aos netos e bisnetos.
Com aparelho nos ouvidos, aproxima-se para dizer que “não há justificação para não se saber o que mudou há 50 anos e para se desconhecer o que representou uma ditadura de 48 anos”.
A visita diária à sede do PCP no Tortosendo faz parte da rotina, o partido que considera levantar “as questões mais pertinentes para os trabalhadores” na Assembleia da República. Os 90 anos vão ser celebrados em eventos coletivos, este ano a presidir à comissão das comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril, com a esperança de que seremos “responsáveis” para não permitir que as sombras do passado regressem.