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50 cêntimos

“Como ainda sinto a solidariedade da "classe”, a mesma solidariedade que por estes dias reclamamos, como ignição para apoiar um movimento grevista inconsequente”

Em 2010 um café custava cinquenta cêntimos. Grosso modo. Houve muitos dias desse longo ano que eu não tinha cinquenta cêntimos para tomar esse café. Muitos. Mesmo. Naquela época, não tão remota assim, eu estava falido, sem “tusto”, que não é uma pequena quantia de dinheiro, é mesmo bolso roto. Falido, sem emprego, a esmolar sopas e descanso junto de família, que revelava pouco conforto no “papel”, amigos, em abono da verdade, e a apanhar boleia do wi-fi de um qualquer estabelecimento onde, quando tinha os tais cinquenta cêntimos que me permitiam a tal bica quente, me encostava durante longas manhãs. E tardes. Passava os meus “santos” dias à procura de condições para voltar ao batente. Como jornalista. A minha profissão. Com cerca de cinquenta anos de idade, e muitos de actividade, uma vasta rede de contactos e um optimismo do tamanho de “como daqui até à lua”, achava que a “fase menos boa” seria contornada a qualquer momento.

Estive vários meses, diria bem mais de um ano, a enviar centenas de candidaturas espontâneas, a responder a outras tantas “ofertas” de colocação, em jornais, televisões, rádios, agências de comunicação e outros “ramos” dos media. Como bem sabemos, eram muitos. Hoje, bem menos. Naquela época que se prolongou até meados de 2011, exceptuando alguns projectos que realizei como freelancer para amigos, é bom dizê-lo, as portas fecharam-se. As janelas também. Quase todas. Eu, que me tinha em boa – talvez exagerada – consideração como profissional, sofri uma das maiores humilhações da vida. Senti-me um “zé tolo”. Naquela época, não conseguindo fazer prova do meu “estatuto” de desempregado junto da Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas, perdi o número e o título da acreditação. Na verdade, sofri um bom abalo na capacidade de acreditar. O optimismo passou a ser do tamanho, como “daqui ao outro lado do passeio”. Nem ao fim da rua. Foram muitas as recusas. É, levei “boas negas”. Talvez merecidas porventura, ah… como ainda sinto a solidariedade da “classe”, a mesma solidariedade que por estes dias reclamamos, como ignição para apoiar um movimento grevista inconsequente, e que apenas chamou a título, precisamente a falta de solidariedade existente. Já não podemos falar em classe de jornalistas, muito menos há consciência do que isso seja, e na verdade o jornalismo que se arrasta pelas ruas de amargura, fomos nós, que ao longo dos últimos vinte anos, preocupados com a “agenda” própria e um bom mealheiro, o deixamos cair, porque nem sequer olhamos para o nosso parceiro, que na redacção “nos” escrevia textos e ganhava dez vezes menos. Ou então fomos ali dar umas palestras pagas pelo turismo, pelas tecnologias, pelas indústrias, e chamamos-lhe jornalismo. Ah… espera… produção de conteúdos. É isso. Em 2024, consigo pagar o meu café, a 75 cêntimos é certo, e se sou jornalista, isso em boa parte, devo-o a verdadeira solidariedade.

 

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