A crise humana originada pela invasão da Ucrânia mostrou que conseguimos ser decentes a acolher, a mobilizar vontades, a reunir ajuda humanitária, a dar a mão a quem o improviso da vida tirou o chão e deixou sem tecto.
É retemperador assistir a esta resposta colectiva da Europa, dos portugueses e dos beirões em particular a um drama a quente que já provocou estilhaços em tantas direcções e ainda de consequências imprevisíveis. Nem sempre foi assim.
Somos um país que sabe o que é deixar tudo para trás e transportar o sofrimento e uma vida arrumados no que cabe numa mala ou apenas na roupa do corpo. Muitos milhares viram-se obrigados a sair repentinamente das antigas colónias, a regressar, muitos a “retornar” a um país onde nunca tinham estado e a recomeçar, mas, tal como na altura não tivemos a capacidade de tratar todos com a dignidade e compreensão a que as circunstâncias obrigavam, também na crise migratória de 2015 não soubemos estar à altura.
Conforta-me ver que por estes dias nos voluntariámos, doámos, abrimos as portas a quem precisa de abrigo. Que nas fronteiras onde há pouco se pontapeavam refugiados, se tratava de forma desumana quem procurava uma nesga de esperança, quem fugia da guerra, do terrorismo, da morte ao virar da esquina e da miséria era travado pelo arame farpado, hoje se multipliquem pontos de apoio aos deslocados e sejam recebidos com fraternidade e solidariedade.
Em Portugal há uma comunidade ucraniana de 30 mil pessoas. Há duas décadas eram muitos mais. Todos nós já nos cruzámos ou conhecemos alguém do país por estes dias martirizado. Não nos são estranhos, sentimo-los como mais próximos. Existe um sentimento de identificação.
Seja por esta facilidade de aceitação do que é mais semelhante, seja por este conflito em particular ter maior impacto nas nossas vidas quotidianas, seja por há um mês os holofotes estarem continuamente virados para um cenário de horror que nos impede de desviar o olhar e fazer de conta que não está a acontecer, estamos desta vez a agir com humanidade, como devia acontecer em situações semelhantes, independentemente da cor da pele, do credo ou da origem geográfica.
Ao início da semana, segundo a Organização Internacional para as Migrações, eram já três milhões as pessoas que fugiram da Ucrânia, 1,4 delas crianças. Algumas já chegaram à região, outras vão chegar e certamente vamos saber fazer sentir bem-vindo quem está a lidar no limite com o desconcerto do mundo.
Que esta seja uma oportunidade para nos questionarmos sobre as nossas políticas de acolhimento e possamos olhar para os exemplos de municípios e instituições que abriram os braços a quem, de outras latitudes, ultrapassou tormentas e não jaz hoje no fundo do Mediterrâneo.
Que nos faça reflectir como somos capazes de sentir empatia pelo sofrimento alheio e que sirva de espelho para outras latitudes e para tratarmos com igual humanismo quem não se parece tanto connosco. Que pensemos que em outras coordenadas há países agressores e países invadidos, que em outros lugares há pessoas a fugirem do indizível e a precisarem de ajuda.
Como diria Millôr Fernandes, “muita gente acredita que está mudando o seu modo de pensar, quando está apenas pondo maquilhagem nos velhos preconceitos”. É estarmos atentos a nós, para que algo de bom medre deste momento sombrio.
*Jornalista