Não é a cena do anúncio do “choque fiscal” ou que raio é isso, que afinal nunca aconteceu. Nada. Nem sequer nos devemos indignar, admirar com tal sucedimento. A tentativa de enganar um grupo numeroso é algo que também parece uma conquista de Abril, tal a impregnação da mentira no corpo da nossa democracia. Por estes dias, ao chegar a casa, noite escura, silêncio no bairro quebrado por um alerta sonoro. Um homem remexia o lixo do contentor, procurando algo. Eventualmente um pedaço de pão velho, restos de comida com que pudesse fintar a fome, ali mesmo na praça, ou levar para o lugar onde habitualmente pernoita. Uma tenda debaixo do viaduto, uma barraca de madeira entre os canaviais. Somo nós que escolhemos a morada onde este indivíduo se encosta. Aquele que mais nos convém, para que a vergonha que devemos sentir não nos doa tanto. Há centenas de cidadãos que nunca terão uma casa, trabalho, nem recursos de sustento. Há milhares de portugueses sem as mínimas condições de subsistência. Muitos até vão trabalhar, mas ao fim do dia, o que os espera é o choro de uma criança, os gritos de uma mulher, reclamando uma razão para uma vida condigna, quase quarenta anos depois de nesta pequena casa a que costumamos chamar país, começaram a chegar contentores cheios de dinheiro, de uma outra casa um pouco maior a que acabávamos de aderir. Um poço sem fundo para o desenvolvimento social, crescimento económico, redução das desigualdades e eliminação da pobreza.
“Enquanto houver um pobre em Portugal, o ideal estará por cumprir”, terão dito tantos, mas tantos políticos que ao longo destas décadas têm sido chamados pelos seus eleitores para tornar “isto”, um sítio agradável para se viver. Ao invés, milhões, muitos milhões de euros depois, a face visível é um tratado de uma doentia obsessão por auto-estradas, pontes, viadutos e túneis, que nos têm aberto caminhos mais rápidos apenas para lugares onde não há nada. Bom, talvez algumas migalhas deixadas pelos grandes obreiros – que nós continuamos a seguir qual burro atrás da cenoura – no final dos seus grandes repastos. Os portugueses, e todos os outros que pelas mais diversas razões escolheram Portugal para ter uma morada, merecem muito mais do que uma mão cheia de nada. O verdeiro embuste é este. Um país de promessas por cumprir, onde a mentira é lei, e a qualidade de vida uma miragem. Este movimento que dá vivas à liberdade e à democracia, passa uma esponja sobre tudo o que (não) conseguimos realizar, e continua lá atrás. 50 anos antes.