Dizem-nos que, às três da tarde, num dia de semana, é difícil encontrar gente na rua. “Se fosse ao domingo depois da missa” frisa Maria, nascida e criada no Ourondo, que nos vai aconselhando a esperar pelas 16 horas, altura em que o único café/mercearia da aldeia abre. Apesar de tudo, face ao dia de sol desta quinta-feira, 9, e depois de três dias de chuva, há gente na rua. E todos sabem que, esta semana, o Ourondo pode voltar a ser freguesia autónoma. “A ver se o Marcelo não estraga isto” diz Maria, que ouviu no noticiário que o Presidente de República pode vetar a desagregação de 132 uniões de freguesia, apesar de este já ter dito que vai esperar primeiro por aquilo que saia da Assembleia da República.
É amanhã, sexta-feira, 17, que o Parlamento analisa e vota os projetos-lei que podem dar origem a novas freguesias. A proposta conjunta para a reversão das freguesias agregadas em 2013, apresentada no parlamento na passada quarta-feira, 8, prevê que 132 uniões de freguesia sejam desagregadas em 296 freguesias nas próximas eleições autárquicas. No distrito, podem ser separadas oito uniões, em 16 freguesias, e no concelho da Covilhã, a Comissão Parlamentar do Poder Local e Coesão tinha aprovado quatro desagregações (a da Covilhã/Canhoso ainda não estava incluída), entre Barco e Coutada, Cantar-Galo e Vila do Carvalho, Peso e Vales do Rio, e Casegas e Ourondo, aquela que deu mais celeuma quando foi criada em 2013.
Maria, 77 anos, lembra-se bem do dia em que o povo, em protesto contra a agregação da freguesia a Casegas, invadiu, ao final da manhã de um domingo, o local onde se encontrava a mesa de voto e atirou com a urna ao chão, tal como as mesas, cadeiras, boletins e toda a documentação, numas eleições autárquicas, um ato que acabou por ser anulado e repetido no domingo seguinte. Tal como a vizinha, outra Maria, de 71 anos, residente há 50 anos na aldeia, por via de um casamento com um dos locais, que já faleceu. “Aquilo parecia o fim do mundo. Houve guerra e de que maneira. Casegas não gosta do Ourondo, e o Ourondo também não gosta de Casegas” assegura, mesmo depois de quase 12 anos de um casamento “forçado”. Para esta residente no Ourondo, mas nascida em Angola, uma união que nunca fez sentido, e que deve desaparecer. “É bom que fiquemos fora de Casegas, para ver se temos mais serviços públicos, que não temos cá nada. Qualquer coisa que tenhamos que tratar, temos que ir lá” assegura, pedindo que não lhe tire foto. “Eu sei lá se o que a gente diz não leva a mais guerras” frisa.
Também a vizinha acha o mesmo. “Gostava que fôssemos de novo independentes. Há aqui muita coisa mal feita, e as papeladas, ou metemos ali nos correios para levarem para Casegas, ou temos mesmo de lá ir. Antes tínhamos sempre a Junta aberta, agora não. Há pessoas que, por exemplo, trabalharam em França e quando têm que fazer prova de vida, por causa das reformas, é uma complicação. Têm que ir de propósito a Casegas. Nestes anos ficámos muito pior” assegura Maria.
Mais abaixo encontramos Floriano Guerra, 92 anos. Aproveitou o sol para caminhar. Nascido no Ourondo, passou a maior parte da sua vida, 42 anos, emigrado em países africanos como Angola e Moçambique. Ganhou a vida, casou, teve filhos, regressou a Portugal, mas primeiro para Lisboa, onde os filhos se formaram, e veio viver a sua velhice para a sua terra natal. Da qual, garante, nunca se separou. “Enquanto cá estive, jovem, sempre gostei de contribuir para as obras que cá houve. Hoje, vejo uma aldeia destruída, sem nada. Por isso sou da opinião que o Governo volte a deixar o Ourondo livre, como sempre foi, antes de se juntar a Casegas. Lembro que quando nos juntaram, houve pessoas que choraram” frisa.
A sair de serviço daquele que é o principal empregador da aldeia, o lar da terceira idade, está Odete Agostinho, 63 anos. “Acho muito bem que volte o Ourondo a ser independente. Nós aqui precisamos de mais coisas, em especial, serviços. A aldeia está abandonada de todo. Espero que haja essa separação e venha a melhorar, porque se assim não for, a gente está cá para reclamar” assegura. Nas ruas do Ourondo, quando questionamos uma ou outra pessoa sobre a hipótese de amanhã a freguesia voltar a ser autónoma, vamos ouvindo um “já não era sem tempo” ou “vai haver festa”. Odete até acredita que a maioria da população fique feliz, mas festejar…duvida. “Até podia haver uma festa, sim, mas era se houvesse cá pessoas. Que não há. Que nestes últimos dez anos saiu de cá muita gente” garante.
Quando se abriu a oportunidade de reversão das agregações de freguesias no País, no Ourondo/Casegas a unanimidade marcou a votação da proposta de desagregação da União de Freguesias. Uma decisão que foi saudada com palmas e esperança, numa assembleia de freguesia extraordinária, onde se recordaram os anos de um “casamento imposto pelo Estado” de divórcio anunciado, marcado por inúmeros episódios de tensão entre fregueses e eleitos, como chegou a vincar o presidente da União de Freguesias, César Craveiro.
No final do mês de dezembro, a Assembleia Municipal da Covilhã aprovou, por unanimidade, a desagregação das uniões de freguesia de Peso/Vales do Rio, Barco/Coutada, Casegas/Ourondo e Cantar-Galo/Vila do Carvalho. Os eleitos nas várias bancadas votaram favoravelmente a criação de oito novas freguesias no concelho, considerando, genericamente, que se está a reverter um processo injusto e que nunca espelhou a vontade das populações envolvidas. César Craveiro, presidente da UF Casegas/Ourondo, a mais contestada das agregações feitas no concelho, frisou que este “foi um erro manifesto”, que afastou “eleitos de eleitores”. E recordou que desde a primeira hora as duas aldeias foram contra, bem como os autarcas, destacando que tanto Casegas como Ourondo preferem “percorrer sozinhas o seu caminho”, apresentando uma proposta de desagregação “bem fundamentada e elaborada” que “releva a vontade inequívoca de reverter esta agregação”.
Boicote “furado” levou à exaltação
A 29 de setembro de 2013, votava-se, em Portugal, para as autárquicas. No Ourondo, esperava-se que ninguém votasse, mas cinco pessoas acabaram por fazê-lo. Quando se soube que o boicote tinha sido “furado”, os ânimos exaltaram-se. Na escola primária, o povo entrou em massa, derrubou a urna de voto, mesas, cadeiras, boletins, dizendo que se estava a “vendar a alma ao diabo” ou “levam-nos tudo, qualquer dia não temos cá nada”. José Rito, na altura, presidente da Junta de Freguesia do Ourondo, dizia que os acontecimentos tinham sido espontâneos e resultavam da “revolta do povo”. “Marginalizaram o povo do Ourondo. A própria lei devia prever estas situações e não permitir que houvesse listas com elementos só com elementos de uma das localidades”, censurava o autarca, que lamenta que os governantes não tenham “posto os pés” na freguesia para “auscultar a vontade das pessoas”.
Já em Casegas o dia de eleições decorreu com normalidade. Dos 304 votantes, 266 fizeram a cruz na única lista a sufrágio, 25 votaram em branco e houve 13 boletins nulos.
No domingo seguinte, o resultado da votação no Ourondo foi de apenas um voto para a lista única que se apresentou a sufrágio para liderar a União de Freguesias. As coisas, dessa vez, correram de forma pacífica, mas o povo saiu à rua mostrando o seu descontentamento devido à agregação da freguesia. Apenas 10 pessoas votaram, numa mesa com 460 eleitores, registando-se seis votos brancos, três votos nulos e um voto para a lista única que se apresentava a sufrágio.
Peso/Vales do Rio, Barco/Coutada e Cantar Galo/Vila do Carvalho também para separar
No concelho da Covilhã, são mais três as desagregações que podem ser aprovadas amanhã: Peso/Vales do Rio, Barco/Coutada e Cantar Galo/Vila do Carvalho.
Todas elas tiveram pareceres favoráveis nas respetivas assembleias de freguesia, tal como na Assembleia Municipal da Covilhã, por unanimidade.
Rui Amaro, presidente da UF Peso/Vales do Rio destaca que a agregação foi “opção legislativa errada, que prejudicou seriamente as populações”, frisando que esta violou a vontade das populações, a sua identidade e a vontade dos autarcas. E realçou que a proposta de desagregação de Peso e Vales do Rio cumpre todos os requisitos previsto na lei, motivo pelo qual espera que seja respeitada a vontade das populações e esta seja aprovada no parlamento.
Na União de Freguesias de Barco/Coutada, o presidente, Vítor Fernandes, já lembrou que a agregação nunca foi bem aceite pelos populares e que até criou “algum sentimento de desconfiança”. Segundo o autarca, a junção “não trouxe qualquer vantagem”, esperando agora que seja “respeitada a vontade do povo”.
Já Pedro Leitão, presidente da União de Freguesias de Cantar Galo/Vila do Carvalho, recordou várias vezes que o povo tem sido “claro a defender a separação”, e que aquando da agregação as pessoas “sentiram que já não tinham a sua própria freguesia e isso mexeu com o sentimento de pertença e de enraizamento”. A expectativa é que agora a Assembleia da República aja “em consonância” com o que ouviu do povo.
“Não é tempo de pôr em bicos de pés”
Cerca de 12 anos depois de ter sido agregada a Belmonte, constituindo-se a União de Freguesias de Belmonte e Colmeal da Torre (UFBCT), a freguesia do Colmeal pode vir a voltar a ter autonomia própria, mas para o presidente da UFBCT, Hugo Adolfo, este “não é o tempo de pôr em bicos de pé” de modo a tirar partido disso, em termos pessoais. O “recado” foi deixado na última assembleia municipal de Belmonte pelo autarca socialista.
Hugo Adolfo garante que tudo foi feito para “cumprir a promessa” feita à população de voltar a ter duas freguesias autónomas, algo que “está próximo” de acontecer, e que agora importa pensar em ter “duas freguesias com futuro”, com a transição a ser feita “da forma mais pacífica possível”.
O presidente da Câmara de Belmonte, António Dias Rocha, saúda a medida, diz que no processo “tudo correu bem”, mas lembra que a freguesia do Colmeal terá agora que se recriar, uma vez que “todo o património que tinham foi entregue a instituições”, algumas fora do concelho.
A freguesia do Colmeal da Torre foi criada em 1949 por desanexação da freguesia de Belmonte, mas foi extinta em 2013, tendo sido reagregada com a freguesia de Belmonte, restaurando o território da freguesia anterior à desanexação de 1949, mas agora sob a designação de União das Freguesias de Belmonte e Colmeal da Torre.
No distrito de Castelo Branco, além destes cinco casos, estão ainda em causa mais três no concelho albicastrense: Escalos de Baixo/Mata, Escalos de Cima/Lousa e Ninho do Açor/Sobral do Campo.
Agora, prevê-se que tudo fique concluído até março de 2025, seis meses antes das eleições autárquicas.