A COR DO SANGUE

Somos fruto de gerações miscigenadas. Todos. É história. Está escrita”

Declaração: tenho muitos e bons amigos portugueses. Daqueles a que uma certa ordem política costuma tratar por “portugueses de bem”. Bom… tenho outros que não sendo tão amigos, são bons conhecidos. Também “de bem”, naturalmente. Em ambos os casos, um sem número de defensores acérrimos do que por norma tratam de identidade nacional, “portugalidade”, alma portuguesa, e por aí fora. Em alguns casos, “raça portuguesa”. Ser português, como algo muito especial. Exclusivo, único. Sou até capaz de entender e de respeitar um certo grau de nacionalismo, algo que ande lado a lado com o orgulho de por aqui termos nascido, numa das Beiras, no Minho, em Trás-os-Montes… no Alentejo, e até aceitar um sentimento de pertença. Tipo “esta é a minha terra”, pertenço-lhe! Aceito. Ela pertence-me! Humm… pois…o que me custa muito, não consigo ver com bons olhos, é que tanta gente que conheço se meta na fila para vangloriar o negacionismo face à evidência de que somos fruto de gerações miscigenadas. Todos. É história. Está escrita. Aliás, bem explicada ao longo dos tempos, e nos mais variados contextos. Desde logo pelos processos de colonização e de migração por que passamos. Não é preciso ir muito atrás para encontramos ascendentes indígenas, africanos, e até europeus… para tornar a coisa mais agradável à leitura. E mais próxima, naturalmente. Gente mais parecida connosco, portugueses “de bem”.

Vejamos, nós fugimos a salto, sem saber ler nem escrever, anos e anos em condições deploráveis de vida, trabalhando quase como escravos, e lá está acabamos casados com francesas, tivemos filhos alemães, cunhados luxemburgueses. Exemplos não faltam, estão aos magotes espalhados um pouco por todo o país, a viver em casas “tipo maison”, com janelas “à la fenêtre”. Ao domingo vamos à missa, mas horas antes, sábado à noite, encostamos a barriga ao balcão, e escudados em meia dúzia de bagaços, vociferamos contra os “imigras” que não têm aonde cair mortos, bradando aos céus; “este é o nosso reino, é preciso limpar Portugal”. Muito tempo antes, aparelhamos as naus, viajamos pelo Atlântico abaixo, e fomos parando aqui e ali, onde víamos terra. Alguns lugares eram terra de ninguém, outros estavam pejados de gente. Com essa gente fizemos o que quisemos. A eles pusemo-los a “acartar pedra”, com elas tivemos filhos. Quantos de nós, descendemos de tantos malditos frutos daqueles ventres. Não têm conta, os que construíram este Portugal e os outros que vieram a seguir. Não podemos rejeitar a responsabilidade nos milhares, milhões de relações que criamos, muitas delas criminosas à luz dos nossos dias, mas sem condenação durante os largos períodos da história da escravatura. Desde os tempos em que nos achamos, aos períodos da exploração. Estes, uns e outros, de bem e de mal, somos nós. E este é o país que herdamos. Escrito por portugueses de todo o tipo de sangue. Mas com a mesma cor. A cor do sangue.

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