COISA BONITAS

“Há linhas vermelhas que a democracia não poderia ultrapassar, sobretudo as que podem simplesmente levar ao seu desmoronar. É isso que está a acontecer”

“Diz-me coisas bunitas*, sussurradas ao ouvido com sabor”, assim cantava Sara Tavares, e essa beleza podia estar nas cores do arco-íris, ou no riso de   um bebé. Pois, lá está… coisas muito bonitas. O treinador de futebol Artur Jorge, campeão europeu pelo Futebol Clube do Porto, utilizava amiúde nas respostas aos jornalistas de que gostava pouco, a expressão “fizemos coisas bonitas”, para justificar a qualidade do jogo da equipa que orientava. Em boa verdade, há coisas tão bonitas numa partida de futebol, que parecem arte de que o “Rei Artur” era amante.

Vem isto a propósito de me estar a ser tão difícil aproveitar a oportunidade destas crónicas para escrever coisas bonitas. Olho para o mundo e turva-me a vista. E não é nem miopia nem estigmatismo, é mesmo a paisagem que é cinzenta, bruta, grotesca. Sou capaz de olhar para algumas das coisas que se passam no mundo, e atribuir-lhes um sentido de graça, achá-las engraçadas, agora beleza, não lhes encontro. Escolhi alguns dos momentos mais, não diria hilariantes, mas provocadores de ironia, talvez até de humor. Donald Trump a falar com os seus botões na Assembleia Geral das Nações Unidas, o desprezo de parte da nação portuguesa pelos seus activistas na frota que seguiu para Gaza, o “cérebro” do ministro Nuno Melo, a investigação do Ministério Público ao juiz Ivo Rosa, as linhas vermelhas do grande mito Passos Coelho, são tudo coisas muito feias, mas que nos podem provocar algum sorriso. No meu caso, de sarcasmo. Há nestes episódios, nestas figuras, algo de tragicomédia. Coisas feias que nos fazem sorrir. A prestação do “poupas laranja” americano, apesar de ter sido mais um momento de auto-elogios e de vaidade, quase nos passaria ao lado se de facto não tivesse sido boicotado pelas escadas rolantes e pelo teleponto. A caricatura no palco da diplomacia mundial. A malta sorri, e alarga o sorriso ao ver, como de tanto brilhar, a mente do ministro Melo pode entrar em curto-circuito, como uma faísca que se solta de uma tomada, ao chamar terroristas aos portugueses que se fizeram ao mar. Em tom de provocação, arriscando a vida, dando luta ao “statu quo”, saindo da sua zona de conforto, onde a maioria de nós se manteve com o habitual discurso de sofá. Apáticos, cínicos, quedos e mudos para uma das mais preocupantes notícias, que traz os bufos para a ribalta, a alma da ditadura, quando a troco de uma delação, se devassa durante três anos, a vida de um juiz.

Há linhas vermelhas que a democracia não poderia ultrapassar, sobretudo as que podem simplesmente levar ao seu desmoronar. É isso que está a acontecer, e é bom que percebamos em que coisa feia nos estamos a tornar. Esta crónica era para se ter chamado “A Ervilha”, como algo que está nas cabecinhas de uns, mas também me passou pela minha chamar-lhe “Espertos que Nem o Alho”, pela demonstração da sagacidade de outros. Preferi Coisas Bonitas. E tudo graças à Inteligência Artificial.

* bunitas, em crioulo de Cabo Verde

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