O odor fétido que se sente quando nos aproximamos anuncia a falta de salubridade em que tem vivido Miguel, de 48 anos, há cerca de sete sem um tecto permanente. A chuva dos últimos dias encharcou-lhe o colchão em que dormia. Uma vizinha deixou-o refugiar-se do frio gélido num sítio um pouco mais abrigado, onde o vento não pede permissão para entrar, mas o cheiro é bafiento e pútrido. À entrada, as batatas, parte do almoço, que costuma guardar para o jantar, bóiam dentro do recipiente que a chuva fez transbordar. No interior, dois sofás individuais entretanto oferecidos, encostados, são a cama onde vai passar a próxima noite, a alguma distância do chão, tapado por dois finos cobertores.
Miguel, colarinho encardido como tudo à volta e feridas em toda a parte visível do corpo, já teve uma vida normal. Um emprego estável, uma casa, esposa e um filho, a morar no estrangeiro e longe de saber as circunstâncias exactas em que o pai vive, até porque a relação entre ambos é superficial. Os problemas de alcoolemia, associados a uma série de infortúnios, atiraram-no para uma espiral descendente a que não percebe como chegou. Limita-se a encolher os ombros, como se não fosse possível sair do poço em que se encontra e voltar a estar num patamar de dignidade.
O irmão, com quem tem uma relação instável e também ele com necessidades sociais, tanto lhe permite ficar em sua casa como o expulsa. Miguel vai andando pelas casas devolutas, pelos cantos da cidade. Uma espécie de fantasma, numa situação invisível a quem durante o dia o vê circular pela rua ou pelos estabelecimentos onde procura algum conforto e foge às temperaturas que lhe agridem o corpo.
O caso não é desconhecido da Segurança Social nem da Câmara Municipal. Miguel já foi acompanhado e submetido a desintoxicação. Recaiu no álcool. Chegou a ser ajudado pelas Conferências de São Vicente de Paulo, segundo José Manuel Amarelo, que também lhe deu a mão, o transportou para nova cura ao problema de alcoolismo e desanimou com a pouca resistência à tentação de Miguel. O antigo presidente do Centro de Alcoólicos Recuperados considera estar-se perante um caso de saúde mental, que só o acompanhamento psiquiátrico e eventual internamento podem resolver, opina. Essa solução, respondem as entidades oficiais, só um tribunal a pode decretar, se houver motivo para tal.
Casos de sem-abrigo “não têm tido expressão”
Na última sexta-feira, 8, os serviços de Acção Social do município informaram o NC que nessa noite Miguel, que por vezes sai da órbita da equipa, já não ia dormir na rua. Foi encontrada uma situação transitória, enquanto a sua candidatura a alojamento, entregue recentemente na autarquia, aguarda aprovação. Os técnicos têm a expectativa de que tal aconteça na próxima reunião privada da Câmara da Covilhã.
Cristina Maximino, directora do departamento de Acção Social, sublinha que os casos de sem-abrigo “na cidade não têm tido expressão”. “Os que existem temos conseguido resolver”, acrescenta. No caso de Miguel, os técnicos conversaram com o irmão e aceitou acolhê-lo. O processo de candidatura a uma habitação propriedade do município “está em andamento” e contempla os dois irmãos, embora o titular seja Miguel. A responsável autárquica acrescenta ter sido sugerido ao antigo empregado de hotelaria ficar numa casa de emergência, “mas ele não queria”.
O discurso de Miguel é confuso, não é linear. As ideias ficam a meio. Ajeita o gorro na cabeça. Volta a encolher os ombros, entre o resignado e a vergonha. Ao NC conta porque não quer ir para os bairros sociais do Tortosendo ou do Teixoso. Depois da separação da segunda esposa e de ter saído do ramo onde trabalhou 18 anos, devido a reestruturação na empresa, acabou por ir trabalhar na poda, em Valladolid, Espanha, aliciado por pessoas que conhecia de cá. Nunca lhe pagaram. Alguns colegas eram agredidos e metidos dentro de jaulas, conta. “A mim nunca me bateram”, diz. Acabou por fugir para Portugal, a pé. Uma caminhada de cinco dias, onde faltava dinheiro e sobrava fome. Receia voltar a encontrar quem o contratou, gente que ocasionalmente vê passar de automóvel na rua.
“Agora estou a pagá-las”
Os últimos pousos de Miguel foram o Pátio dos Escuteiros, numa casa sem telhado nem portas ou janelas. Quando as obras no local começaram, mudou-se para o alpendre do Calvário, de onde foi obrigado a sair e passou a acomodar-se numa outra casa sem janelas nem cobertura, nas imediações.
O álcool agrava-lhe os problemas. Porque não pára de beber? Porque quanto mais tempo passa a dormir, menos sente. O torpor ajuda-o o evadir-se da realidade e a esquecer o desgaste físico e emocional a que está sujeito. “Eu ponho-me na cama a pensar, a pensar nas coisas, e não consigo dormir. Beber ajuda a esquecer”, explica, na tentativa de ensaiar uma justificação para a sua condição.
A desorientação leva-o a ver suspenso o Rendimento Social de Inserção, no valor de 189 euros. Esquece-se de comparecer às convocatórias. Os pais faleceram, a relação com o irmão anda no limbo, a ligação ao filho é distante, tal como aconteceu durante o seu crescimento. Agora assume estar a colher o que plantou. “Como foram as coisas no passado, agora estou a pagá-las”, analisa. Os caminhos levaram Miguel a uma existência que não passa por viver, apenas por sobreviver, mas que interpela uma sociedade perante a desumanização.