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A Aurora Boreal de 1938

Carlos Madaleno

Covilhã, Janeiro de 1938. Há muitos anos que não se via um inverno assim, chuva torrencial, muita neve, e vento. A noite de 31de Dezembro fora fustigada por tamanha ventania que provocou estragos em quase todos os telhados da cidade. Agora era o frio, um frio de rachar. Pela manhã, a caminho da fábrica, ouviam-se os passos dos que pisavam as areias alvoraçadas pela geada, das árvores pendiam estalactites de gelo cristalino. Contavam-se as novidades para esquecer as dores nas mãos entanguecidas. Falava-se da nova Câmara que iria tomar posse, Calheiros Velozo tinha sido um bom presidente, aguardava-se com expectativa o que faria Francisco de Almeida Garrett. Comentava-se a morte do pobre diabo que, na noite de 9 para 10, enregelara, na Rua Nova do Boeiro, nem a zurrapa com que se encharcara na taberna lhe valera. Discutiam-se ainda as razões que terão levado ao homicídio do abade José Carlos Pereira, padre nesse lugar do fim do mundo, a que chamavam Lameiro e hoje Macinhata da Vouga.

Nos campos colhia-se a azeitona, operação que, à época, se efectuava bem mais tarde que hoje. Dizia-se que “quem colhia a azeitona antes do Natal deixava o azeite no olival”. Assim se iam passando os dias de Janeiro, quando terça-feira 25, o dia amanhece com uma geada que mais parecia um nevão. Até aqui nada de anormal para alterar as rotinas das gentes que mourejavam de manhã à noite. Sim porque ao entardecer mal o sol se punha não havia quem metesse o nariz fora de casa. Mas aquela noite seria diferente. Por volta das 20 horas, começaram a ouvir-se estalidos semelhantes aos da lenha a arder. Para as bandas do Nordeste, uma enorme mancha avermelhada surgia no céu. No jardim de São Francisco, começava a juntar-se uma multidão assustada que observava o fenómeno. Visto daquele local tinha uma extensão que ia do Teixoso à Portela. Haveria de escrever o Noticias da Covilhã, dias mais tarde, que “embora toda a cumeada da serra escondesse atrás de si como que um braseiro imenso, o foco principal vimo-lo sobre a vila do Teixoso, subindo a pouco e pouco até às Portas dos Hermínios. Esta mancha cor de fogo era por vezes atravessada por flechas cor de luz”. Já vista do Teixoso, a mancha, por detrás da serra, parecia ir de Orjais até Manteigas, localizando-se a maior intensidade sobre o Alto de São Gião. Esta visão provocaria uma balburdia nunca vista. Os sinos tocavam a rebate, na rua ouviam-se os gritos lancinantes dos que julgavam que havia chegado o dia do Juízo Final, e, àquela noite não se seguiria um amanhã. Corria-se para as igrejas, procuravam-se familiares e amigos. Punha-se facilmente fim a velhas zangas e contendas, embora no dia seguinte muitas fossem retomadas. De joelhos, implorava-se o perdão divino. Nas igrejas os párocos tentavam acalmar as multidões assustadas, explicando que era apenas um fenómeno natural, uma Aurora Boreal. Muitos haveriam de associar o sucedido com a profecia de Fátima “no Pontificado de Pio XI começará uma outra Grande Guerra. Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida sabei que é o grande sinal”. A primeira parte do prenúncio já se havia cumprido há 16 anos, no dia 6 de Fevereiro de 1922, quando à 14ª votação saiu fumo branco pela chaminé da Capela Sistina. Os destinos da Igreja ficaram então entregues a um Pontífice chamado Pio XI, ficava a faltar a estranha luz que anunciaria a guerra. E agora o povo aflito via o céu encher-se de cor de sangue, num bailado de raios e labaredas.

Por volta das 1hora e 30 minutos da manhã do dia 26 de Janeiro, a mancha ainda se via, embora muito mais ténue, acabando por desaparecer. Muitos não chegaram a pregar olho, mas o trabalho fê-los retomar as rotinas, embora ainda amedrontados com o estranho fenómeno. Durante os dias seguintes não se falou noutra coisa. Para a maioria das pessoas aquele fora o grande sinal que a Virgem havia anunciado aos Pastorinhos em 1917. Coincidência ou não, apenas 10 dias volvidos, a 4 de Fevereiro, de 1938, Hitler proclama-se Comandante supremo das forças armadas e a 12 de Março as tropas Nazis invadem a Áustria. Coincidências, disseram muitos, esquecendo a inutilidade de tal vocábulo…Enfim, uma noite de estranha beleza que marcou aquele ano de 1938, tal como o haveria de marcar uma outra de verdadeiro terror, de 9 para 10 de Novembro, a Noite dos Cristais, onde se ceifaram centenas de vidas inocentes.

 

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