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A equipa que cuida e atenua as “dores no coração”

Ana Ribeiro Rodrigues

A viver sozinha numa casa no centro do Barco, com as paredes repletas de quadros pintados “pela irmãzinha” com quem sempre viveu, os poemas emoldurados que a sua companhia de sempre lhe escrevia ora mitigam a saudade, ora acentuam a dor da perda, há um ano. Referenciada pela Junta de Freguesia, Maria José Fernandes, de 85 anos, passou este ano a receber a equipa multidisciplinar do projecto Cuidar em Casa, que serve 42 seniores e se destina a melhorar a qualidade de vida e a autonomia dos residentes em cinco freguesias da corda do rio, com o objectivo de atrasar a necessidade de uma eventual institucionalização.

Maria José Fernandes, que ocupa o tempo a ler textos bíblicos e a recordar os familiares já desaparecidos, perpetuados em imagens e rimas que lhes dedica, mede a tensão, exercita as pernas numa pedaleira, ao mesmo tempo que executa exercícios de estimulação cognitiva. Levanta-se e senta-se com os braços cruzados ao peito, tenta seguir as indicações da animadora social e coordenar as elevações da bola acima da cabeça com as do joelho. A intervenção que passou a ter fá-la sentir-se melhor. “Ainda faço mais do que me dizem. Ponho-me a subir e a descer as escadas”, conta. Mas o que mais valoriza são as visitas rotativas dos elementos da equipa e a companhia que lhe fazem.

“Passei cá muitas dores sozinha. Não eram dores físicas, eram dores no coração. Senti-me muito sozinha. Há poucos vizinhos, os que há não saem de casa e é bom ter com quem comunicar. Eram só coisas más a acontecer, foi um período difícil e começar a receber estas visitas foi uma coisa boa, porque eu precisava muito de amor, de carinho”, diz a antiga empregada de escritório, ao NC.

Idosos estão mais acompanhados e activos

O projecto dinamizado pelo Centro Social Comunitário do Peso começou no início do ano, em plena pandemia, depois de as pessoas já terem vivido um primeiro confinamento, e a abordagem nos primeiros meses passou por contactar pessoas sinalizadas pelas entidades parceiras, para “estabelecer relações de afecto com elas” e “criar laços de confiança”, explica a socióloga Cristiana Ramalho. Algumas mostraram resistência, por lhes custar admitir que precisam de ajuda e que estão a perder capacidades. Para quem ficou no projecto, com a duração inicial de um ano, foi desenhado um plano individualizado, em função das suas necessidades, e os técnicos vão fazendo visitas regulares.

“A companhia que fazemos é tão importante como o resto. Se não lhes apetecer naquele dia, não obrigamos ninguém a fazer qualquer actividade, mas basta a nossa companhia para se sentirem felizes. Muitos deles, se cá pudéssemos passar o dia inteiro, é o que queriam, porque existe muita solidão, na maioria dos casos os filhos estão fora e sentem-se bem com a nossa presença”, nota a educadora social da equipa, Inês Pinto.

Ângela Proença, auxiliar, já trabalhava no apoio domiciliário. Com este complemento diversificado e multidisciplinar, constata que os utentes isolados “sentem-se neste momento mais acompanhados e mais activos”. Além da mesa e roupa lavada, existe agora resposta para outras necessidades. “O programa arrancou numa altura em que estava tudo confinado e com os idosos dentro de casa, muitos dizem que estão sós, não têm cá ninguém. Para quem ficou com as funções motoras mais comprometidas, é uma ajuda também importante, terem apoio e poderem continuar em casa”, acrescenta.

“São quem me tem valido”

Marisa Trigueira, enfermeira há 13 anos, na instituição há seis e agora integrada na equipa do Cuidar em Casa, pára o carro, ajeita o casaco azul, mete às costas o saco com o material médico e bate à porta de Maria José, de 86 anos, em Vales do Rio. A fractura na perna condicionou-lhe a mobilidade e é com dificuldade que se levanta para levar a injecção. “Eu não posso ser a pessoa que era, não posso fazer nada”, lamenta-se. “Daqui a nada já está a andar direitinha”, responde, enfática e animadora, Marisa Trigueira, que lhe pergunta como se sente das tonturas, dores e lhe controla a tensão.

“Tratam-me como família, até me fazem ginástica. São quem me tem valido. Estou muito bem entregue, muito bem tratada. O lar é o último recurso e, se não tivesse esta ajuda, teria de ir para o lar. Acudiram-nos e sou muito agradecida”, salienta, num murmúrio, enquanto as lágrimas se soltam por trás dos óculos de massa, ao mesmo tempo que se sente enclausurada num corpo que já não é o que conhecia e que, teimosamente, deixou de lhe obedecer.

Enquanto a visita decorre, Elisabete e Rosa fazem a cama, arrumam a casa e tratam da higienização da residência, uma tarefa que já tinham antes, por prestarem apoio domiciliário ao marido.

Trabalhar as funções físicas e cognitivas

As visitas aos 42 beneficiários não têm todas a mesma periodicidade. Diariamente são visitados utentes diferentes, em função das suas particularidades. “Depende das afectações, mas cada um recebe pelo menos duas visitas por mês. Só de se ir perguntar como estão já se sentem alvo de atenção”, realça Cristiana Ramalho.

No Peso, em casa de José, 85 anos, Raquel Coelho, a fisioterapeuta, ajuda-o a levantar, a calçar as pantufas, a ganhar metros com o andarilho. Já à entrada de casa corrige a postura, a respiração, pede para endireitar as costas, elevar os braços com os pesos, fazer exercícios de coordenação. As mãos são trémulas e nem sempre acompanham, mas a técnica incita a ultrapassar as dificuldades de uma prótese no joelho. “Já foi atrasado. Agora não levantou a perna ao mesmo tempo que contou”, indica, enquanto José se desafia com duas tiras elásticas presas aos pés.

A intenção é associar o movimento ao raciocínio. A tarefa de Raquel passa por manter as funções físicas e cognitivas de quem tem autonomia e, nos casos em que há alguma limitação, “trabalhar para não deteriorar ou potenciar a função, além de em simultâneo reduzir a sensação de isolamento. “Além da parte física, a saúde mental é também importante”, acentua a fisioterapeuta, que gostava de ver o programa alargado a mais beneficiários e o número de equipas aumentar.

Para José, onde se destacam em casa as molduras com as fotos dos netos, residentes em França, a intervenção trouxe-lhe “mais confiança”. “Psicologicamente, ajuda. Sinto-me melhor”, comenta. A mulher, Rosária, transmite que antes destas visitas regulares a casa se sentiam “mais sozinhos”. “Já éramos utentes do apoio domiciliário, agora passámos a ter mais assistência e mais companhia”, analisa.

“Uma grande evolução”

Ver os resultados do programa é um estímulo. Quando Maria de Lurdes, de 78 anos, foi indicada pelo centro Social da Coutada, há alguns meses, “não conseguia andar nem comer sozinha” e “a nível cognitivo também teve dificuldades”, recorda a animadora social. Hoje conseguem “ver uma grande evolução nela”.

Um acidente vascular cerebral, em Março, deixou Maria de Lurdes muito limitada. Depois do tratamento hospitalar e das sessões de fisioterapia passou a ter o acompanhamento da equipa do Cuidar em Casa, que lhe estimula o corpo e a mente. “Quando cá não vêm, já sentimos a falta”, vinca o marido, José, 80 anos, enquanto destila o resultado da vindima.

“Elas fazem-me bem. Não estão o dia inteiro ao pé de mim, mas vêm todos os dias ver-me”, sublinha Maria de Lurdes, ao mesmo tempo que vai esticando e encolhendo um elástico e contando o número de vezes que o faz. Os dois filhos estão sempre por perto, diz, mas têm o seu trabalho e esta atenção, integrada e articulada, tem sido um dos pilares da recuperação. “Sem esta ajuda, a recuperação seria mais complicada”.

Cinco áreas de actuação

O projecto contempla cinco vertentes: apoio social, serviço de enfermagem, animação sociocultural, fisioterapia e auxílio na prestação directa de cuidados e cumprimento de planos de saúde. Dos 42 beneficiários, 27 são do Peso, sete do Barco, cinco da Coutada, e três de Vales do Rio. A Junta de Freguesia do Dominguizo, outro dos parceiros, ainda não sinalizou qualquer caso. Desde Janeiro, foram feitas cerca de 900 visitas nas diferentes áreas de intervenção.

O funcionamento da equipa está assegurado até ao final de Janeiro e quem se habituou a um serviço diferente do habitual apoio domiciliário, transversal e mais completo, prefere não colocar a hipótese de que não tenha continuidade.

“Fazer algo diferente no apoio domiciliário”

O Cuidar em Casa é um projecto experimental de um ano, resultado de uma candidatura do Centro Social Comunitário do Peso, no valor global de 67 mil euros, comparticipados em quase 36 mil euros pelo BPI Fundação La Caja Rural. A ideia foi “mostrar que se pode fazer algo diferente no apoio domiciliário”, “mudar a actual realidade desse serviço” e, tendo em conta a impossibilidade de cada instituição ter uma equipa própria com todas estas respostas, “partilhar recursos e trabalhar em conjunto”, salienta o presidente da instituição, Rui Amaro.

Aderiram as uniões de freguesias do Peso e Vales do Rio, do Barco e Coutada, a do Dominguizo e o Centro Social da Coutada. O custo inicial foi de 65 mil euros, com o montante próprio a ser “pesado”, e para manter a equipa são necessários 35 mil euros anuais.

Rui Amaro adianta que o presidente do município se comprometeu a apoiar o projecto, que o dirigente gostaria de ver replicado em outras zonas e a que deseja ver mais entidades da corda do rio associadas, apelando para que não se tenha uma postura de “cada um defender o seu quintal”, sem pensar nos benefícios de “aproveitar sinergias”.

Para breve está prevista uma reunião com todas as juntas de freguesia da corda do rio, para avaliar o apoio que cada uma pode dar e esperar que o presidente do município “cumpra o prometido”, para viabilizar o projecto, que será novamente candidatado ao mesmo programa.

“O objectivo é fazer com que as pessoas prolonguem a sua autonomia, fiquem na sua habitação, tenham um envelhecimento mais activo e evitem ser institucionalizadas”, preconiza, dando como exemplo a lista de espera de 94 pessoas para o lar do Peso.

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