“Agentes culturais do Interior fazem trabalho heroico”

Aos 43 anos, Bruno Borralhinho é uma das principais referências da Covilhã, no mundo da música. No lançamento do Concurso Internacional de Música Júlio Cardona, violoncelista e maestro, que dirige o mesmo, deixa elogios a quem trabalha na cultura na região

Decorre, esta semana, a primeira edição do Concurso Internacional de Música Júlio Cardona. O que muda em relação ao antigo Concurso de Instrumentos de Arco?

O Concurso Internacional de Música Júlio Cardona (CIMJC), na sua primeira edição, pretende honrar a tradição que a Covilhã tem em organizar concursos internacionais de música. Entre os anos 70 e 90 do século passado tiveram lugar várias edições do Concurso de Piano Cidade da Covilhã, entre 1997 e 2015 tivemos o Concurso de Instrumentos de Arco Júlio Cardona, e desde 2016 temos também na cidade o Concurso Internacional de Percussão da Beira Interior. O formato do novo CIMJC distingue-se sobretudo porque pressupõe mais abrangência em termos de categorias a concurso. Para fazer a tal ponte com a tradição, insistimos em incluir as categorias de piano e violino, mas insistimos também em introduzir uma novidade com uma categoria que, por assim dizer, rompe com a tal tradição dos concursos mais antigos: um instrumento de sopro, neste caso a flauta. Em futuras edições, a ideia é dar continuidade a este caráter eclético e diversificado. Tanto podemos ter instrumentos dos vários tipos, como canto, música de câmara, composição, proporcionado desta forma também uma experiência diversificada ao próprio público.

Quantos músicos se inscreveram? Que expetativas tem, uma vez que há músicos dos quatro cantos do globo?

Tivemos cerca de 50 inscritos de 14 nacionalidades diferentes: Portugal, Espanha, França, Itália, Reino Unido, Suécia, Eslovénia, Polónia, Ucrânia, Rússia, Japão, Coreia do Sul, Cuba e Estados Unidos da América. Em si, não é um número muito alto, mas significa um grande sucesso, tendo em conta o formato do próprio concurso que, em vários aspetos, é muito diferente dos antigos concursos. Assumimos com toda a intencionalidade uma certa filtragem logo à partida, porque a primeira fase do concurso foi uma pré-seleção por vídeo.  Dessa pré-seleção resultaram 8 concorrentes por categoria, portanto 24 no total, que são os que vamos ouvir na Covilhã nas rondas principais e nas finais. Por outro lado, os inscritos na tal primeira fase de pré-seleção, tiveram que pagar uma taxa de inscrição, e os selecionados para as rondas principais tiveram que pagar uma taxa de admissão. Foram valores muito moderados quando comparados com outros concursos em Portugal, mas obrigam logo a um certo compromisso. A exigência e estrutura do próprio repertório, escolhido ao detalhe em cada uma das categorias, acaba também por ser um filtro natural, porque muitas obras só estão ao alcance de músicos com um nível mesmo muito alto. As expetativas são, portanto. muito altas. Por exemplo, numa das categorias, a qualidade dos inscritos e respetivos vídeos foi tão alta, que o júri pode dar-se ao “luxo” de deixar na lista de reserva uma aluna da Juilliard School de Nova Iorque, uma das melhores e mais prestigiadas escolas de música do mundo. Estamos muito felizes com a qualidade dos concorrentes que vamos receber na Covilhã. Temos a certeza que vai ser um evento muito interessante para o público e muito prestigiante para a cidade.

Acredita que estes concursos, no Interior, podem catapultar músicos para a ribalta?

Não só acredito, como tenho a certeza. Se por um lado um prémio num concurso desta dimensão não garante, por si mesmo, uma carreira internacional de sucesso, por outro lado, também é verdade que o facto de se estar no Interior pode ser contrariado com estratégias de comunicação e promoção adequadas. Estamos muito empenhados em divulgar o evento e em promover ativamente os concorrentes e os premiados junto de festivais, salas de concertos e agências de artistas. Um dos objetivos assumidos desde o início é precisamente a valorização e promoção do talento de jovens músicos. Os primeiros premiados de cada uma das três categorias do CIMJC, para além do prémio monetário, serão automaticamente vencedores do “Prémio Solista”, que corresponde a um concerto a solo, em 2026, com uma das orquestras parceiras do CIMJC: a Orquestra Metropolitana de Lisboa, a Orquestra das Beiras e a Orquestra do Algarve. Desta forma, estamos a promover ativamente a carreira dos primeiros premiados, proporcionando-lhes uma oportunidade concreta para mostrar o seu valor à frente de uma orquestra profissional.

As pessoas sabem quem foi Júlio Cardona, quer na Covilhã, quer no País?

Júlio Cardona, covilhanense, viveu entre 1879 e 1950, e foi um dos músicos portugueses de maior prestígio do século XX em Portugal. Ainda muito jovem, tornou-se membro da Orquestra do Real Teatro de São João do Porto e da Orquestra do Real Teatro de São Carlos de Lisboa e, em 1910, foi nomeado professor de violino no Conservatório Nacional em Lisboa, onde aliás já lecionava há alguns anos. Realizou digressões por todo o país e no estrangeiro, era um solista e pedagogo muito prestigiado, e também um reconhecido maçon, mas acredito que mesmo na Covilhã não se conheça bem a sua biografia. O CIMJC decidiu prestar-lhe homenagem e a Câmara está a preparar uma exposição no Teatro Municipal, disponível durante o concurso, com objetos do espólio musical e pessoal de Júlio Cardona, que se encontra no Museu Nacional da Música. Uma excelente oportunidade para descobrir mais sobre a vida e obra deste ilustre covilhanense.

Que importância teve, para si, vencer há mais de 26 anos, o antigo Concurso de Instrumentos de Arco?

Na altura eu tinha 16 anos e, mesmo sendo um prémio de “júnior”, foi um grande incentivo para a minha trajetória de “sénior”. Quem é que com 16 anos já tem a certeza de como quer construir a sua vida? No meu caso, eu já tinha a forte suspeita que a minha vida e a música nunca se iriam separar, e aquele prémio foi, por assim dizer, a primeira confirmação oficial de que o caminho era mesmo aquele. Foi um orgulho imenso ter vencido o concurso na minha própria cidade, com a minha família e os meus amigos a ouvir-me e a torcer por mim. São memórias incríveis, que ficam para sempre.

O concurso é inteiramente financiado pela Câmara. Há falta de apoios à cultura na nossa região?

Em relação a este novo CIMJC, não posso afirmar que haja falta de apoios na região, porque também não os procurámos. O evento é promovido e organizado unicamente pela Câmara da Covilhã, que abraçou este projeto com grande motivação e compromisso, entendendo que é uma mais-valia para o panorama cultural da cidade. Optámos desde o início por um modelo modesto, mas realista, sem entrar em loucuras. A ideia é apostar na qualidade e dar passos seguros. No futuro, então sim e se possível, quem sabe até conseguimos despertar o interesse de outros apoios na cidade, na região ou mesmo a nível nacional.
Quanto aos apoios à cultura na nossa região, creio ser desnecessário enumerar as dificuldades, os obstáculos e o trabalho heroico de praticamente todos os agentes culturais no Interior. São óbvios e indiscutíveis. Só resta continuar a lutar e a trabalhar para concretizar os sonhos, na esperança de que os apoios possam corresponder cada vez mais à qualidade e ao potencial que existe no terreno. Na esmagadora maioria dos casos, é até uma mera questão de justiça.

Com um orçamento baixo, de 20 mil euros, é possível trazer músicos de qualidade?

Apostámos num modelo de financiamento muito modesto, mas realista. Boas intenções toda a gente tem, boas ideias também, por vezes o problema é encontrar um caminho para as realizar. Tentámos encontrar um equilíbrio. O CIMJC conseguiu auto-financiar-se em cerca de 20%. Além disso e apesar das limitações orçamentais, foi possível convencer e cativar excelentes músicos e personalidades de grande prestígio para serem parte do projeto. Tanto para serem membros do júri, como, por exemplo, excelentes pianistas colaboradoras para acompanhar os concorrentes das categorias de violino e de flauta. Tenho a certeza que ninguém aceitou os convites pelos honorários, porque são mesmo muito modestos.  Temos a ambição de crescer no futuro, mas dando passos seguros no presente.

Quais os prémios monetários para os melhores?

Os primeiros premiados, em cada uma das categorias, receberão um prémio monetário de dois mil euros, os segundos premiados receberão 500. Além destes prémios e do prémio especial “Premio Solista”, que já mencionei, teremos também o prémio especial “AVA Musical Editions” para a melhor interpretação, em cada categoria, da obra obrigatória de um compositor português. Este prémio será atribuído em forma de voucher, para a aquisição de partituras do catálogo da AVA Musical Editions, e corresponde a um valor total por categoria de 300 euros. Um concurso com outras possibilidades orçamentais, normalmente encomenda obras a compositores contemporâneos. No nosso caso, eu sabia logo à partida que não teríamos orçamento para tais proezas e resolvi tornar o problema numa solução. Um dos grandes problemas dos compositores contemporâneos é que as suas obras, depois de estreadas com pompa e circunstância, ficam injustamente esquecidas na gaveta e raramente ou nunca voltam a ser tocadas. Resolvi então apostar em obras de alguns dos mais importantes compositores portugueses contemporâneos – António Chagas Rosa, Alexandre Delgado e João Pedro Oliveira-, que não são estreias, mas são mesmo muito boas e encaixam na perfeição nos programas de cada uma das nossas categorias. Consegui que todas estejam editadas pela AVA Musical Editions e os próprios compositores ficaram extremamente felizes com a oportunidade.

Como pode, como o Bruno, um músico daqui chegar ao patamar que chegou?

Não há uma fórmula secreta, não há truques, nem segredos. Os músicos, em palco, estão completamente expostos ao escrutínio do público e do destino. O único caminho possível é trabalhar muito para tentar aproveitar o talento com que supostamente nascemos. Só com um desses elementos é impossível chegar muito longe. O ideal é sempre um bom equilíbrio entre o talento ou a vocação, e o trabalho. E depois há uma série de fatores externos que certamente ajudam, como os professores que se encontram pelo caminho, as decisões que se tomam em determinados momentos-chave, como, por exemplo, quando decidimos em que escola ou universidade queremos estudar, com que músicos nos rodeamos. Mas sobretudo, é muito importante ter curiosidade, motivação e fome de aprender mais e melhor.

Que principais diferenças encontrou quando, ainda de tenra idade, saiu da Covilhã para o estrangeiro?

Foi uma mudança radical, tendo em conta que fui da Covilhã, uma cidade pequena do Interior de um país pequeno, para uma das maiores capitais culturais europeias. Em relação ao meio musical, basta dizer que na Covilhã não havia na altura sequer uma loja onde eu pudesse comprar partituras ou discos de música erudita e era o meu professor de violoncelo – o caríssimo Luís Sá Pessoa, também ele covilhanense -, que todas as semanas viajava de Lisboa para a Covilhã para dar aulas na EPABI, que me ia trazendo CDs para eu ouvir ou fazer cópias-pirata em cassete. De um dia para o outro, em Berlim, passei a poder ouvir ao vivo todas as semanas uma das melhores orquestras do mundo, a Filarmónica de Berlim. Não há sequer comparação possível, e nem se exige que a Covilhã possa competir de alguma forma com Berlim em termos de dinâmica cultural. Fui um sortudo por ter podido desfrutar dessas oportunidades, mas também fui um sortudo por ter podido desfrutar de outras coisas antes, ainda na Covilhã.

Pensa, algum dia, voltar a Portugal para trabalhar no mundo da música?

Apesar de viver na Alemanha há 25 anos, venho trabalhar a Portugal com muita frequência, seja como maestro ou violoncelista. Mas a pergunta vai com certeza noutro sentido, e a minha resposta é “sim”. Penso nisso todos os dias, embora isso não signifique que algum dia possa acontecer. Adoro Portugal, a minha família também, e se algum dia aparecesse uma oportunidade muito interessante para voltar a viver em Portugal “a tempo inteiro”, quem sabe. Sempre tive uma certa necessidade e premência para, por exemplo, promover a música portuguesa lá fora, ou para aproveitar os conhecimentos e experiências que fui acumulando no estrangeiro para realizar projetos e ideias em Portugal. A ligação emocional existe com certeza e, por consequência, é impossível não ter sempre a porta entreaberta.

 

Em Portugal, o novo governo fundiu num só ministério cultura, juventude e desporto. Faz sentido? Há uma desvalorização da cultura por cá?

Para o novo governo imagino que fará sentido. Para a oposição não fará sentido nenhum, mas talvez até já tenham feito parte de governos com um ministério só para a Cultura, sem conseguirem resultados práticos. Acredito (e espero) que o mais importante não é a estrutura ou a denominação, mas sim as estratégias, as pessoas que tomam as decisões, e sobretudo o orçamento disponível para aplicá-las. A valorização da cultura não pode ficar refém das tais boas intenções e boas ideias. Tem que ser materializada com meios e recursos adequados, aplicados com visão, critério e equidade

PERFIL

Nome: Bruno Borralhinho

Idade: 43 anos

Naturalidade: Covilhã

Profissão: Músico

Breve currículo: Violoncelista e maestro, é membro da Orquestra Filarmónica de Dresden, diretor artístico do Ensemble Mediterrain, diretor musical do Beyra – Ensemble Orquestral da Beira Interior e diretor artístico do Concurso Internacional de Música Júlio Cardona. Estudou violoncelo na EPABI, em Berlim e em Oslo, e apresentou-se como solista com as principais orquestras portuguesas, na Alemanha e no Brasil. Venceu o Concurso de Instrumentos de Arcos Júlio Cardona e o Prémio Jovens Músicos da RTP-Antena 2. Como maestro, dirigiu orquestras em Portugal, Alemanha, Roménia, Rep. Checa, China, Brasil e México, e trabalhou com destacados solistas de prestígio mundial como Camilla Nylund, Javier Perianes, Peter Bruns ou Sarah Maria Sun. A ópera é uma das suas grandes paixões, tendo dirigido produções de Donizetti, Mozart, Ravel e Puccini, e trabalhado como assistente em produções de Wagner e Beethoven. Concluiu um Master em Gestão Cultural na Universitat Oberta de Catalunya de Barcelona, e é Doutorado em Humanidades (História, Geografia e Arte) na Universidad Carlos III de Madrid. A sua investigação e tese tiveram como tema as relações entre o poder e o campo da música erudita -dita “clássica”- em Portugal ao longo do século XX.

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