Moldar terapêuticas e ajustar dosagens, para reduzir a possibilidade de errar no tratamento, ou investigar amostras biológicas para ajudar a diagnosticar doenças e guiar o médico no tratamento mais preciso são tarefas dos farmacêuticos em ambiente hospitalar. Um trabalho maioritariamente invisível aos olhos do público, mas essencial nas dinâmicas de um hospital.
Na Unidade Local de Saúde (ULS) da Cova da Beira há 14 farmacêuticos especialistas, um número insuficiente para as necessidades, mas há mais sete num processo formativo que dura quatro anos, cinco em farmácia hospitalar e duas em análises clínicas. São os residentes farmacêuticos, o equivalente aos internos de medicina, que fazem um percurso evolutivo e tutelado.
“A residência farmacêutica é o período formativo pós-graduado necessário em Portugal para se tornar especialista nestas áreas e para exercer em ambiente hospitalar”, explica João Ribeiro, especialista na ULSCB e presidente do conselho da especialidade em farmácia hospitalar da Ordem dos Farmacêuticos.
Sentado a uma secretaria na área de ambulatório, onde doentes com patologia crónica vão com periodicidade buscar a medicação e ter consultas farmacêuticas, Diego Pettonosso, 28 anos, formou-se no Porto, trabalhava em Lisboa na venda ao público, numa farmácia, e escolheu a Covilhã porque procurava “uma mudança de estilo de vida”, numa cidade mais pequena, para voltar a estudar e fazer a especialidade, para progredir na carreira.
Nascido em São Paulo, no Brasil, sempre gostou de saúde e de química e foi em Ciências Farmacêuticas, um curso “muito abrangente”, que encontrou a rota para o futuro.
Há poucos dias ao serviço, vê a entrada no Hospital da Covilhã como “uma oportunidade de mudança” e “é em ambiente hospitalar” que se imagina a trabalhar.
Aqui, vai começar a tratar dos processos logísticos do medicamento, da contratação pública, aquisição de medicamentos, a armazenar, organizá-los e distribuí-los dentro do hospital, depois a envolver-se nas equipas clínicas, para participar na decisão terapêutica, que medicação usar e como, que dosagem, verificar e validar prescrições médicas, antes de serem administradas pela enfermagem. Um caminho progressivo e acompanhado, de quatro anos.
Os médicos fazem o doseamento, os farmacêuticos o ajuste. Propõem o alargamento do intervalo da medicação, a diminuição da dosagem, para que o medicamento esteja sempre dentro do nível terapêutico, mas nunca do nível tóxico, pormenoriza João Ribeiro. O clínico pode aceitar ou não a sugestão, mas compete aos farmacêuticos preparar a medicação e enviá-la para os serviços.
Com a ausência temporária de alguns profissionais, a ULS está “absolutamente fragilizada” no número de especialistas e não é fácil preencher as vagas que vão abrindo. “Não há especialistas e os que há neste momento estão todos a trabalhar”, vinca João Ribeiro, que vê na formação de residentes a via para reforçar o número de farmacêuticos no Serviço Nacional de Saúde.
Na sala de validação, onde se olha para o preço dos medicamentos, Beatriz Xavier, natural da Covilhã, no primeiro ano da residência, e Patrícia Ramalha, do Fundão, no segundo ano de formação da especialidade, fazem parte dessa equipa de orientandos, que se espera venham no futuro a colmatar as necessidades.
“A entrada massiva de residentes vai dar frutos no futuro. Nós precisamos muito de especialistas”, refere João Ribeiro.
A existência do curso de Ciências Farmacêuticas na Universidade da Beira Interior acaba por ter uma ligação à procura de vagas nacionais que abrem na ULS Cova da Beira, uma vez que vários residentes e especialistas são formados na UBI.
De bata, luvas e junto aos equipamentos onde se fazem hemogramas, análises bioquímicas, estudo da distribuição nas células sanguíneas ou contagem de células, Joana Gamboa, 27 anos, natural de Peraboa, é um desses casos. Trabalhava numa farmácia comunitária no Ferro, tirou o curso na UBI, queria experimentar uma área nova e a ULS Cova da Beira foi a primeira opção quando fez a prova de ingresso da Administração Central do Sistema de Saúde. O fator casa pesou, mas também ser um hospital com o qual estava familiarizada e onde “os serviços estão interligados”.
Joana Morais, 31 anos, é a outra farmacêutica residente em análises clínicas, uma vertente com menos procura. Está no terceiro ano e a Covilhã é “uma mais-valia” pela proximidade com a Guarda, de onde é natural, além de ser “um hospital do interior que tem muitas valências, como a medicina reprodutiva”.
Estudou em Salamanca, em Coimbra, fez uma graduação em toxicologia clínica, era técnica superior na ULS Guarda e candidatou-se à residência farmacêutica para evoluir na carreira. No laboratório trata das amostras com pedidos de análises, garante que os equipamentos estão calibrados, que a amostra é íntegra, decifra sinais ocultos na urina, no sangue, nos tecidos, para ajudar a diagnosticar doenças e guiar os médicos no tratamento mais preciso.
“Temos de dar ao médico o resultado mais credível, que corresponde à realidade, porque toma decisões clínicas em função dos resultados que lhes enviamos”, menciona Joana Morais, alta, de bata branca, credencial ao peito e, entre equipamentos alinhados, é uma decifradora de enigmas à escala microscópica, à medida que analisa cada pedaço de material biológico à espera de ser lido e trazido da invisibilidade para um mapa de dados concretos.
Outra tarefa é comunicar, quando detetados, valores críticos, que poem em risco a vida do doente, para que sejam tomadas decisões e medidas.
Anualmente entram nos hospitais cerca de 140 residentes. Desde 2023, quando a ULS Cova da Beira passou a ter idoneidade para as especialidades de análises clínicas e de farmácia hospitalar, tem havido sempre candidatos. Segundo Olímpia Fonseca, diretora do serviço, neste momento as vagas estão ajustadas à realidade, tendo em conta que é necessário orientar.
Os especialistas no serviço farmacêutico são dez e quatro no laboratório de análises clínicas. Poucos para tudo o que se ambiciona fazer.
Segundo João Ribeiro, é necessário pelo menos mais um farmacêutico para cada centro de saúde da ULS, para poderem ser feitas consultas farmacêuticas e trabalhar a prevenção, abraçar a área clínica. Fazer consultas de prescrição e de reconciliação terapêutica, tendo em conta a população envelhecida, muitas vezes a tomar muita medicação. Ter um farmacêutico de família. Uma área que poderia libertar médicos.
“Mas há muito além disso. Para reforçar a nossa linha de produção temos de ter mais farmacêuticos especialistas e mais técnicos”, preconiza João Ribeiro, segundo o qual a ULS Cova da Beira “tem uma cultura muito grande de segurança” e os profissionais da área garantem que “os medicamentos chegam em condições” e garantem “confiança no circuito da distribuição”.
O especialista frisa que a experiência lhe diz que o acompanhamento de especialistas farmacêuticos nos hospitais tem uma relação direta com a adequação dos medicamentos. “Nunca se consegue atingir a taxa de erro zero, mas, não havendo farmacêuticos, a taxa de erro de medicação é muito, muito superior”, salienta.
De passagem pela câmara frigorífica e pela sala de preparação de citotóxicos, João Ribeiro para na zona onde se veem justificações individuais, para autorização prévia da Comissão de Farmácia para a aquisição de medicação, uma vez que nem tudo o que está autorizado para uso é financiado e é necessário pôr tudo em equação.
Por mês, a despesa da ULS com medicamentos é de 1,2 milhões de euros e há tratamentos dispendiosos.
O mais caro, para o tratamento de um tipo de mieloma, implica um investimento de 23 mil euros no primeiro e outro tanto no segundo ciclo. O tratamento da hepatite C, entre um a três meses, custa ao SNS seis mil euros. Um doente com esclerose toma medicamentos no valor mensal entre três e quatro mil euros.
As prescrições médicas devem ser previamente verificadas por um farmacêutico especialista no hospital, transformando cada dose num passo seguro no tratamento. No laboratório, os analistas tentam revelar patologias, permitindo que os médicos escrevam o próximo capítulo da terapêutica.
Enquanto os primeiros ajustam a medicação, os segundos desvendam a doença, dois processos no compromisso com a saúde, que sete farmacêuticos residentes abraçaram na Covilhã.