O Bairro da Alegria, na Covilhã, vai ser requalificado. É essa a intenção da empresa que comprou o emblemático bairro operário da cidade ao anterior proprietário em janeiro de 2021. Nas casas térreas em banda nas ruas mais próximas da Rua da Saudade, ao que o NC apurou, a primeira área a ser intervencionada, apenas resta um morador, na Avenida da Felicidade, a aguardar realojamento alguns metros abaixo, para onde, no início de setembro, se mudou a única vizinha, que deixou a habitação onde residiu durante 84 anos.
A empresa de Sesimbra detentora do conjunto de habitações, agora com sede na Covilhã, sublinha ter em mãos um projeto para dar um novo rosto ao espaço, mas salienta estar ainda numa fase inicial e existir “todo um processo burocrático pela frente”.
“A intenção é reabilitar o Bairro da Alegria, mantendo a sua origem histórica e génese de habitação, mas trazê-lo para o século XXI, pretendendo com esta iniciativa colmatar a
necessidade de habitação que, à semelhança do resto do país, se sente na
Covilhã”, revela, ao NC, Luís Conceição, da 2Live, empresa já com investimentos na cidade direcionados para o arrendamento de espaços de habitação partilhada.
No bairro operário construído entre 1938 e 1948, outrora um espaço com muita vida, com centenas de habitantes, a maioria trabalhadores das fábricas de lanifícios e também muitos polícias, restam seis casas ocupadas, na zona da Rua do Centenário, mais próxima do acesso à Rua Marquês de Pombal e à antiga Fábrica Transformadora de Lãs, atual polo das Engenharias da Universidade da Beira Interior.
Placas toponímicas retiradas
No Bairro da Alegria, as placas de identificação das ruas desapareceram em agosto, tal como alguns materiais em metal que foram retirados. As casas estão há muito devolutas, algumas, as das duas primeiras artérias, com sinais recentes de vandalismo. Muitas têm as portas abertas, os vidos partidos e, no chão das divisões exíguas, repousam esquecidas memórias que a morte, a emigração ou um outro futuro deixaram para trás.
Há restos de móveis, de roupa, entulho, medicamentos, faturas, fotos de pessoas com sorriso cristalizado no tempo, elementos decorativos.
Não são só as placas toponímicas azuis com a indicação da Avenida da Felicidade, da Rua da Independência, da Rua da Primavera, da Praça da Victória ou do Retiro dos Poetas que desapareceram. As artérias outrora prenhes de vida, de agitação, de barulho, de convívio até de madrugada, da movimentação de quem chegava ou partia para os turnos nas fábricas, várias nas imediações, deram lugar ao vazio e a um espaço onde abundam as marcas de abandono.
À medida que se desce a escadaria, o silêncio é gritante, interrompido apenas pelo som contínuo da água corrente na fonte e do vento. Nos logradouros as mesas e bancos em cimento foram invadidos pela erva seca e as parras crescem sem regra para os passeios, antes à sombra de cuidadas latadas.
Últimos residentes em mudanças
Os poucos residentes que permanecem no Bairro da Alegria, para quase todos a geografia de uma vida, lamentam o progressivo esvaziamento das casas, o estado a que os edifícios chegaram e o vazio que povoa toda uma zona onde no passado se acomodava demasiada gente para o espaço disponível, mas manifestam-se satisfeitos com a perspetiva da requalificação, que creem estar iminente, tendo em conta as movimentações.
As lágrimas assomaram-se aos olhos de Maria Morais, 84 anos, quando, no último dia de agosto, deixou a casa onde se lembra de viver toda a vida. “Já passou. Sei que não posso estar lá em cima”, diz, puxando os ombros à resignação.
Os proprietários, a quem elogia o trato, disponibilizaram uma habitação alguns metros abaixo, na Rua do Centenário, onde atualmente se concentram os moradores. Fez obras, com a ajuda dos filhos, pequenos arranjos, pinturas de portas e janelas, comprou algum mobiliário e, depois de já se ter mentalizado que são essas agora as suas paredes, diz-se “contente” por saber que aquele que “era mesmo o bairro da alegria” vai ser intervencionado.
Apenas com um vizinho, que trabalha à noite, Maria Morais sentia-se sozinha na casa onde sempre viveu. Uns foram morrendo, outros mudaram-se para lares, os mais jovens emigraram ou passaram a viver em outras zonas e as ruas das festas e do convívio, embora também de muitas dificuldades, perderam o encanto e tornaram-se um “sítio triste”. Deixou de ser “um bairro vistoso”, considera a antiga operária, durante quatro décadas trabalhadora na Empresa Transformadora de Lãs, onde no passado se cardava uma realidade que já não existe fora das memórias e hoje se formam futuros engenheiros.
“Dizem que é para ficar dentro da mesma estética”
Abrigado do calor nos 25 metros quadrados da casa semelhante a todas as outras, construídas com dois quartos, uma casa de banho e uma cozinha/sala, Mário Minas, 66 anos e há 65 a morar no Bairro da Alegria, assoma a uma porta que se mentaliza ser para fechar definitivamente em breve, assim que a empresa lhe entregue o contrato para ocupar uma habitação “lá em baixo”. “Não é a melhor coisa, mas vou para perto”, considera.
Operador de máquinas na indústria de lanifícios, trabalha no turno da noite e, apreciador “do sossego”, do “ar puro”, não se sente mal na condição de último residente nas principais artérias do Bairro da Alegria, onde viveu temperança e emoções fortes, momentos maus e bons.
A placidez dos últimos anos contrasta com os tempos em que não havia habitações desocupadas e na casa ao lado vivia uma família com onze filhos. Está em contagem decrescente para deixar de ter as vistas de sempre, mas sabe que o tempo é remendo e reconforta-o a ideia de que “vão arranjar esta tristeza” e mudar “o ponto a que isto chegou”.
“Dizem que é para ficar dentro da mesma estética. Já não será para nós, porque as rendas, provavelmente, não vão ser compatíveis com os nossos rendimentos, mas ainda bem que vão arranjar”, salienta Mário Minas.
“É uma chaga na cidade”
Rogério Barata, 67 anos, nascido e criado nas ruas onde as casas tinham as portas abertas e existia espírito comunitário, não recorda apenas o convívio, os ruídos que se ouviam através da paredes finas, os bailes ou o companheirismo, mas também a pobreza, desavenças entre moradores e o muito movimento, embora ressalve “a boa harmonia” que caraterizava o Bairro da Alegria, de onde partiu em 1979 para viajar, já depois de ter trabalhado na fábrica Pereira Nina, e ter ficado pelo Reino Unido, de onde regressa duas a três vezes por ano para ver a mãe, a morar num lar.
É no bairro que considera fazer parte de si e que ajudou a formar quem é que Rogério está novamente de férias, com a certeza, depois das movimentações das últimas semanas, de que dificilmente esse continuará a ser o seu porto de abrigo no regresso a casa, embora ressalve que, sem gente e sem vida, as ruas onde cresceu já não podem ser assim consideradas.
“Isto já é só uma casa, um alojamento. Já não se pode falar num bairro, já não é um lar”, frisa Rogério Barata, entre a toalha que seca no cordel e a carrinha com matrícula inglesa ao lado. “É natural que isto não possa ficar assim, pelo que foi, pelo que representou, porque é uma chaga na cidade”.
O bairro privado construído para albergar a muita mão de obra necessária nas fábricas da Covilhã já não é sinónimo de agitação e a quase totalidade das casas passaram a ser pouco mais do que meras paredes com lembranças dentro, enquanto os sinais dos tempos não lhe dão uma segunda vida.