André Leitão
(Médico)
Apresentar um Plano para o Desenvolvimento Sustentável da Serra da Estrela (SE). Foi este o pedido feito pelo último governo à Turistrela, empresa que detém a exclusividade da exploração turística e desportiva acima dos 800 metros da SE, desde 1971 (com contrato renovado em 1986 por uns meros 60 anos). Os projectos da empresa podem ser consultados em www.turistrela.pt/estrelanofuturo. E que futuro esperará a Serra, se avançar o bombardeamento de cimento e aço ambicionado por esta entidade para o nosso parque natural…
É justo que se diga que há nestas propostas algumas razoáveis, como as que recuperam edifícios degradados sem lhes alterar a traça original (as Casas dos Médicos e das Enfermeiras), e algumas até meritórias, criando atracções que potenciam especificidades da Serra – um centro de observação astronómica, um centro desportivo em altitude e um Museu do Cão SE.
Mas a fatia de leão dos projectos idealizados é a construção desmesurada de alojamento turístico em pleno parque natural. Saliento algumas das propostas de construção mais faraónicas apresentadas:
– um complexo com 5 hotéis e 54 moradias, ligando a Varanda dos Carqueijais e a Pousada da SE, numa área total de 240.000m2, uma verdadeira urbanização da encosta;
– um hotel com 100 quartos nos Piornos, no local do antigo edifício do teleférico, um mastodonte cujo impacto visual na paisagem única da Nave de S. António nos faria ter saudades das feias ruínas actualmente existentes;
– um “Templo das Águas” (pelas imagens, melhor nome seria “Templo do Betão”), complexo de piscinas, banhos e saunas nas Penhas da Saúde – será a terra famosa pelas suas águas termais?
– 3 teleféricos de acesso à Torre, que desfigurariam locais de uma beleza geológica única, dando-lhes um ar de parque de diversões (muito há a reflectir sobre este ponto, merecedor de uma crónica por si só).
Outros alojamentos compõem o Plano, mais razoavelmente projectados nas localidades existentes – Sabugueiro e Penhas da Saúde. Mas será adequado uma empresa que é responsável pela exploração desportiva propor construir um Hotel no local dos campos de ténis, em vez de os recuperar?
Esta visão de uma exploração turística maciça no Parque Natural tem óbvios danos paisagísticos irrecuperáveis, mas também sérios impactos ambientais numa zona ecologicamente sensível. Não só na sua construção, mas também na exploração, com todo o consumo de recursos e produção de resíduos, que terão de ser transportados serra acima e serra abaixo, uma viagem também replicada por todos os trabalhadores necessários ao suporte deste turismo massificado. Uma estratégia mais correcta seria privilegiar a dormida da maioria dos turistas nas cidades do sopé da montanha (onde há infrastruturas, e população a empregar) e conjugar com uma robusta rede de transportes públicos para acesso ao maciço central. Mas abaixo dos 800 metros já não lucraria a Turistrela…
Congratulemo-nos, então, pela recusa do ICNF – Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas – à grande maioria destas propostas, pelo óbvio motivo, o não respeito pelo património natural. Apesar de o ICNF ser por vezes criticado por ser excessivamente proibicionista, esta postura é de louvar quando enfrenta planos de construção que de “sustentável” só têm o nome. E, quando os poderes locais apoiam demasiado esta visão de “fazer obra”, é refrescante saber que ainda há instituições nacionais reguladoras que nos valem, e que cumprem efectivamente a missão para que foram criadas. Isto não é pouco, num país pejado de atentados ambientais autorizados por entidades supervisoras que se submetem ao poder político e económico.
Faltarão ao ICNF os meios financeiros e humanos para melhor cumprir a sua missão, a renaturalização de um parque natural já muito devastado. Mas se a conseguir proteger da construção desmedida, terá já feito muito pelas gerações futuras. Esperemos que estas sejam governadas por poderes com uma nova mentalidade, que saibam preservar e valorizar como merecem os nossos tesouros naturais, já livres do jugo de quem vê na Serra apenas uma montanha… de cifrões.
