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Cegueira de Rute não a impede de “ver jogos” e praticar desporto

A cegueira de Rute Machado, 18 anos, nunca foi uma venda para a vida e não é impedimento para assistir a jogos de futebol, de basquetebol ou para ter praticado as mais diferentes modalidades, habitualmente com a cumplicidade da irmã.

Não é invulgar encontrar Rute, natural da Boidobra, em recintos desportivos, muitas vezes acompanhada por Raquel, a irmã, 11 anos mais velha, que tanta vez lhe descreve as incidências do jogo, o que se está a passar à volta e lhe responde ao que vai perguntado.

Ir “ver o Sporting da Covilhã” é um programa familiar, mas, além de a irmã não conhecer todos os intervenientes, o atraso do relato na rádio também não permite acompanhar e fica tensa quando sente a bola passar perto ou o emaranhado de sons emitidos pelos jogadores nas suas proximidades.

“Vir ver” a equipa da terra, o Estrela do Zêzere da Boidobra, do campeonato distrital de Castelo Branco, no seu pelado, é uma experiência mais aprazível, descontraída e garantia de uma tarde de convívio bem passada, onde se movimenta sozinha, com a ajuda da bengala branca, à vontade, entre conhecidos, onde vai ao bar e não sente necessidade de confirmar o troco.

“Quem está a jogar? Quem está no bar? O que aconteceu?”, indaga, quando percebe a agitação e quem está ao redor leva as mãos à cabeça porque a bola não entrou.

A irmã, Raquel, transmite-lhe quando a equipa da casa é admoestada com um cartão amarelo, quando se aproxima da baliza adversária, quando há uma jogada de perigo, quando há uma defesa ou lhe faz o desenho oral de um golo ou das movimentações ao intervalo fora de campo, desde as aventuras do pequeno Lourenço a andar de bicicleta às crianças que aproveitam uma das balizas para aí jogarem um campeonato à parte, com a duração do regresso das equipas dos balneários.

“O desporto tem este poder agregador. É um meio de diferentes vivências, de muitas sensações. Eu venho pelo convívio. Se ganharmos, melhor ainda”, sublinhou Rute Machado, quando o Boidobra já tinha operado a reviravolta em jogo da Taça distrital.

Rute, olhar de um azul translúcido, carregado de entusiasmo, pede emoção a Bia, a quem antes passou a mão pelo corpo, para perceber a sua indumentária, porque ela “veste-se muito bem”, e vai partilhando com outra adepta o bombo e as baquetas, fazendo uso da sua muita experiência na música. Já o som “da corneta” ao lado, fá-la afastar-se, incomodada.

Rute não se limita “a ver”. Não perde uma oportunidade para praticar desporto e tem pena de não existir no distrito “alguma equipa de desporto inclusivo”, que juntasse pessoas na sua condição. Tentou encontrar outros cegos jovens na região, para ouvir as suas experiências e saber das suas realidades. “Os políticos esquecem-se do Interior”, desabafa, quando aproveita para fazer considerações sobre um ensino que, na tentativa de ser inclusivo, exclui, considera a boidobrense.

Já experimentou esqui, surf, paddle nas lagoas da Serra da Estrela, a “incrível” patinagem no gelo, patinagem em linha, canoagem, escalada, rappel, slide, atletismo no Desporto Escolar, faz natação, testou snowboard e skimmy, que não lhe deixaram saudades, futebol para cegos e ‘goal ball´, jogados com uma bola com guizos, que a entusiasmaram.

“O desporto tem uma forte componente social. É elemento de convívio e união e eu nunca me recuso a um desafio. Sou bastante aventureira. A minha família nunca me prendeu e eu sou assim”, vincou a aluna do 12.º ano, ainda sem a certeza se prossegue os estudos na área do Direito ou da Comunicação.

Ao lado, Raquel, a irmã, conta que, por vezes, a família sentiu recriminação pela autonomia dada a Rute, que aos sete anos perdeu a visão.

“Por vezes, fomos recriminados, mas nós não vamos estar sempre ao pé dela em todas as ocasiões da vida e é importante ela aprender. Ela é como a família, que não deixou de fazer as coisas porque a Rute deixou de ver. Nós adaptámo-nos e ela participa por iniciativa própria, mas sempre a estimulámos”, salientou a irmã, assistente social de formação.

Na claque, vestida de azul, Beatriz Ruana, 24 anos, afirmou ser natural a presença de Rute, por estarem habituados “a vê-la em todo o lado, nos escuteiros, no rancho, em musicais”. “Desde pequena que é interventiva. Não ver nunca a impediu de fazer nada”, acentuou.

“Esta é a Rute como a conhecemos e ninguém estranha vê-la nos jogos, porque ela participa em tudo. É uma fonte de inspiração para as outras pessoas”, sublinhou Sérgio Brito, 40 anos, dirigente do clube.

Para o presidente, António Freitas, “a Rute é uma pessoa extremamente adaptável às circunstâncias, aos locais, às pessoas, com garra e uma enorme capacidade de aprendizagem, que lhe permite ultrapassar limitações”.

Sportinguista, por cumprir está o desejo de assistir a um jogo em Alvalade, experiência que antecipa ser “incrível”. Se na Boidobra o mais importante é o convívio, em casa dos ‘leões’ gostava de “captar a energia”, onde “tudo deve ser amplificado”, de preferência, sentada no meio da família, que como Rute sabe os cânticos de cor, e protegida de eventuais boladas, que receia, tal como de confusões e comportamentos que nada têm que ver com desporto, mas que lhe são associados. “O desporto é para ser vivido de uma forma respeitosa, sem violência”, frisou.

No dia em que fez 18 anos esteve no exterior e Raquel conta que foram à loja e andaram à volta do estádio, para Rute ter a “percepção da dimensão”. Dos festejos do único campeonato que viveu, recorda ter andado com o pai de carro, a agitar o seu cachecol onde se lê “mulheres com garra”.

À volta grita-se para o árbitro que “está na hora”. Rute sabe que as linhas da vida são curvas, mas que está sempre a tempo de as contornar com a vontade de ultrapassar obstáculos invisíveis.

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