Boémio, andarilho, comunicativo. José Manteigueiro, 69 anos, caiu em graça entre os estudantes da Covilhã, que há mais de uma década se tornaram a sua principal companhia. Quando cai a noite, circula com um dos muitos modernos rádios da colecção, luzes a piscar. Bebe uns traçados, conta aventuras, faz perguntas de difícil resposta, canta o fado vadio, e o som no aparelho percorre vários estilos, que acompanha com gestos enfáticos. Dança, faz movimentos inusitados e consegue a atenção da plateia noctívaga.
Esta é uma reencarnação de José Matos, Manteigueiro por herança do pai, assim conhecido por ter nascido na vila do lado de lá da serra. Ele que já viveu muitas vidas numa só, sempre pautada pela urgência do desalinho, de uma vida solta, tecida à margem das convenções.
À porta da Câmara Municipal, um grupo não sabe o nome de quem ocupa o edifício, mas garante não haver entre a comunidade estudantil quem não conheça Manteigueiro, figura incontornável da noite covilhanense. Frequenta a casa de alguns. Convidam-no para mostrar os seus dotes na cozinha e conviver, para cantar. Observa as praxes. Participa nas festas. Ajuda na preparação da Latada e recompensam-no com copos, telemóveis e outros géneros. Em 2013 foi o rosto da Semana Académica, protagonista do vídeo e cartazes.
De rádio na mão
Barba e cabelo brancos, olhos de um azul vítreo, andar curvado, ligeiro, por vezes hesitante, sempre acompanhado do rádio, Manteigueiro sente-se acolhido por uma geração junto da qual se continua “a sentir jovem”, como afirma ser o seu espírito, sedento de conhecer pessoas e lugares, inquieto.
Gosta que todos os que passam o cumprimentem, que quem chega à cidade lhe seja apresentado pelos mais velhos. Anda “à deriva” e prefere assim. “Sei que sou cativante, gostam de me ouvir e eu gosto de aprender com eles, de estar no meio deles, em convívio”, diz. “A noite é linda/O dia ainda mais/Amigo como o Manteigueiro/Vocês não arranjam mais”, vai repetindo. Quando chegam as frequências e exames, vê-os recolherem. “Sem eles a noite é diferente”, constata.
“A amizade é um sentimento que nasce, cresce, morre, sem sabermos onde, como ou quando”. Pergunta e dá a resposta aqui e ali, com solenidade. Escutam-no alunos da universidade, mas também da Escola Profissional de Artes. “Conheci-o no Cantinho dos Artistas, onde vai cantar fado, e senti uma afinidade, é uma pessoa solidária”, considera Isabel, 17 anos, aprendiz de violoncelo na EPABI.
Os diferentes rádios de que se faz acompanhar são a imagem de marca de Manteigueiro. Têm entrada USB, leitor de cartões. No dispositivo a que o liga tem mais de quatro mil músicas. Dos Rolling Stones e Beatles ao fado antigo e à electrónica. Há de tudo. Aparelhos não sabe dizer quantos tem. A unidade de medida é “uma prateleira inteira”. Já deu alguns, oferecem-lhe outros. O último foi comprado em Espanha, onde vai temporadas para a campanha da azeitona, da batata ou às vindimas, ganhar dinheiro com que complementa a pensão.
É um hábito antigo, recorda o irmão, António, que se lembra de o ver “em garoto” a cantar e acompanhado da telefonia.
Alma vadia
Manteigueiro, sorriso nos olhos que repentinamente se fixam no incerto e se tornam tristes, por vezes olhar sardónico, fez da pilhéria um seu carimbo. Alma vadia, gosto por se embrenhar na noite com os estudantes, de dia calcorreia quilómetros por caminhos secundários e atalhos. Dos muitos actos da peça que tem protagonizado desse que nasceu, este é mais um.
Quem o conheceu em outros tempos não o imaginava nesta fase da vida. José Matos, nascido a 12 de Março de 1950 no sítio dos Moinhos da Fábrica Velha, cedo mostrou ser uma alma insurrecta. É o terceiro de seis irmãos vivos, entre 11 nascidos. Na escola primária, que frequentou até ao segundo ano nos Penedos Altos, já dava sinais de rebeldia. “Ele não queria ir à escola e a minha mãe trancava-o em casa, mas fugia”, recorda o irmão mais velho, António, vida estável como a da restante família. Uma normalidade a que Manteigueiro sempre se esquivou. Sempre foi a ovelha ronhosa, ainda que não lhe virem as costas.
À beira dos 70 anos, Manteigueiro passou quase metade a contas com a justiça, a entrar e a sair da prisão, por roubo e furto. Especialista em introduzir-se em ourivesarias, passou por grande parte das cadeias portuguesas. Fugiu de muitas delas. Assim como era mestre em entrar onde não devia, também lhe sobravam competências para se escapulir. José Matos soma 45 fugas, diz, e não esconde um certo orgulho pelo feito. Três delas na Covilhã. “Eu sempre fui um indivíduo bom em fugas. Estudava o caso, para ser pela certa”, conta.
Insuflava-lhe o ego andar na rua a ouvir quem se impressionava com a habilidade do assaltante. “Queria ser herói. Gostava de ouvir as pessoas comentar como fez, como não fez”, recorda. A errância sempre chamou por Manteigueiro. Primeiro os pais castigavam-no, “o cinto funcionava”, iam à procura dele, até que deixaram de o fazer. Desaparecia, dormia onde calhava, embrenhou-se em hábitos para lá dos limites legais. Ainda guardou animais numa quinta e foi aprender a pegar fios numa fábrica. Logo constatou não ter feitio para se encaixar no padrão. “Eu queria era gozar a vida”, realça. Na mesa ao lado Alexandrino, “da mesma criação”, ouve e abana a cabeça. “Ele era um corrécio. Os meus pais não gostavam que acompanhasse com ele. É um moinante”, descreve. Manteigueiro não discorda da análise.
“Campeão olímpico de fugas”
O primeiro assalto foi no Fundão, na Avenida. As ourivesarias da Covilhã também lhe mereceram a atenção e, após o furto numa do Teixoso, foi cercado junto às grades do Jardim Público da cidade. Tinha 15 kg de ouro consigo. Sem alternativa senão a rendição, atirou-se do muro. Pensavam ter sido uma decisão fatal, mas valeu-lhe uma nespereira, que amorteceu a queda, só que não evitou a detenção. Numa outra ocasião foi detectado e inquirido como suspeito em Ródão. Adoptou a estratégia de se fazer de mudo e a GNR até acabou por o transportar até Alcains. O problema foi quando saiu da viatura. Esqueceu-se da personagem e, quando se despediam, disse um traiçoeiro “bem-haja”.
Foi encarcerado pela primeira vez ainda menor. “Fui tirar o curso a Coimbra”, recua. Que é como quem diz foi internado na Tutelaria de Infância, no Colégio dos Olivais. Quando o consideraram consciente dos seus actos e pronto a entrar responsável na vida adulta, regressou, para aprimorar a técnica. “Eu sempre fui muito repentino”, caracteriza-se. Impetuoso, no entanto, calculista o suficiente para desenhar estratégias para o sucesso dos seus planos.
António Fernandes, 74 anos, antigo director dos estabelecimentos prisionais de Castelo Branco e da Covilhã, chama-lhe “um campeão olímpico de fugas”, sempre sozinho. “Deve ser dos prisioneiros com mais fugas no país”, frisa, numa altura em que os sistemas de segurança não eram tão sofisticados. Aproveitava horas de mudança de turno, dias de nevoeiro, idas ao hospital.
Quando António Fernandes chegou à cadeia da Covilhã tinha-se José Matos evadido num episódio que impressionou quem relatou o caso ao novo director. Serrou as grades e subiu pelo telhado. “O Manteigueiro de antigamente era como os gatos”, compara. “Era magro e tinha agilidade, destreza”, acrescenta.
Titular neste campeonato, esteve também envolvido naquela que ainda hoje é a maior fuga de uma prisão portuguesa, até então de máxima segurança. Foi em Julho de 78, quando mais de uma centena de presos escaparam de Vale de Judeus através de um túnel de 35 metros e 80 centímetros de diâmetro.
“A idade transformou-o”
Saia e voltava ao delito. Por cada dia de fuga, duplicava a pena. Durante “o estágio”, como lhe chama, prosseguiu os estudos, aprendeu a fazer tapetes de arraiolos, era cozinheiro, faxineiro, correspondia-se com senhoras com o endereço na “Crónica Feminina” e tinha no rádio a grande companhia. O primeiro foi “uma galena” que a mãe lhe levou e que, no total, lhe valeu “mais de cem dias de castigo” por motivos disciplinares, devido à utilização do aparelho.
António Fernandes recorda um preso quase sem visitas, “nada conflituoso”. “Não tenho pensamentos sobre a vida passada dele”, acentua. Por isso abre-lhe a porta quando anda a pé para os lados do Fundão e o convida para almoçar com a família. “Ele agora é outro. A idade transformou-o completamente”, vinca o antigo director da cadeia, que continua a notar-lhe o orgulho pelo que Manteigueiro considera ter sido “um período de heroicidade”.
“Deu-me a sua palavra de recluso”
Manuela Bernardo conheceu José Matos em 1970, em Sintra. Era ela técnica de serviço social. Acompanhou-o durante anos. Numa época em que a vida na cadeia era mais difícil, por vezes partilhava o lanche com Manteigueiro, um preso “sempre muito colaborativo” e marginalizado pela sociedade, que envergonhava a família com as suas acções. Ele já gostava de contar as suas aventuras. Acha que tinha o ímpeto de fugir para mostrar que era bom em alguma coisa. “Ele era bom no que fazia, o que fazia é que não era bom”.
Com origens na mesma região, pediu-lhe para o transferir para o distrito. Manuela Bernardo, 70 anos, mais tarde directora do estabelecimento prisional, deu-lhe “uma oportunidade”, que os guardas prisionais da Covilhã não viram com bons olhos. “Ele deu-me a sua palavra de recluso e nunca me deixou ficar mal, nunca mais fugiu. Apostei nele. Nós temos de acreditar nas pessoas, de lhes dar oportunidade. Sinto-me feliz por ser uma pessoa reabilitada do crime”, acrescenta.
Não quer ter amarras
Toninho, como lhe chama Manteigueiro, o único que ficou com a alcunha do pai, recorda o sofrimento causado aos progenitores. “A minha mãe sofreu um pouco com ele”, lamenta. Parte desse percurso foi assistido à distância. António esteve em Angola. A mãe, operária fabril, e o pai, sucateiro e carpinteiro, não tinham carro para visitar com frequência José Matos nas muitas cadeias por onde passou. Os tempos eram outros.
A última fase na prisão foi passada na Quinta de São Miguel, em regime aberto. Por correspondência conheceu uma senhora do Porto, bastante mais velha, com quem foi morar quando saiu, em 1998. “Ela adoptou-me”, zomba Manteigueiro. O irmão, António, garante ter sido o período de maior estabilidade. Tinha um lar, uma casa, “era um bom vendedor”, não voltou a reincidir. Quando a companheira faleceu, acabou por regressar à Covilhã, foi fazendo cursos de formação profissional.
Há alguns anos que reside num casebre, no Tortosendo, por não querer ter amarras. António, na cozinha ampla, com uma lareira grande e à mesa onde o irmão costuma sentar-se “quando aparece”, tem espaço para o acolher, só que Manteigueiro “não quer compromissos com ninguém”. A cunhada, Ilídia, lava-lhe a roupa, faz sempre comida a mais. “Já tem aparecido com estudantes, com professores, nós gostamos de receber”. Andar por aí “é a natureza dele”. Quanto aos roubos e furtos, considera haver quem se tenha aproveitado do irmão e agora tenham vidas confortáveis, sem nunca terem sido penalizados.
“Regenerei da vida do crime, da boémia não”
Todos os dias anda 40 quilómetros. Com o rádio faz uma média de seis quilómetros por hora. Sem ele garante andar mais devagar. Gosta de ouvir a bola, os relatos do Benfica e a Antena 2. Há anos que é guia nas peregrinações a Santiago de Compostela e a Fátima. Sozinho demora três dias, com grupos, mais. É um GPS dos caminhos alternativos e atalhos. Seja pelos montes, seja nas vielas da cidade. Caminhar é o que lhe dá maior prazer. Vai para a Guarda, Monsanto ou outro destino. É assim que gosta de conhecer, a pé. “Se eu não andasse, estava no albergue. Barco parado não faz viagem”, enfatiza.
O rádio, além de estratégico quando se quer fazer desentendido, é o seu remédio para adormecer, quando o sono tarda.
Manteigueiro não se mostra arrependido dos pecados pretéritos. Viveu uma época. Fala com glória das façanhas, mas o rosto fecha-se quando recorda que aquando do falecimento da mãe estava em precária, mas quando um irmão faleceu o viu, sem ir ao cemitério, e na altura em que o pai morreu andava fugido.
Rodeado de muita gente, o antigo fora da lei parece emparedado no seu mundo. Diz que mora “no além”, gosta de conversar, de cantar e não se vê com maus olhos. “Fui um malandro, e de que maneira, mas não me considero mau”, avalia Manteigueiro. Também Manuela Bernardo entende que o seu antigo presidiário “não tem mau carácter”. “Regenerei da vida do crime, da boémia não”, admite, para sintetizar a sua filosofia de aventureiro: “nunca dei importância ao que é uma vida normal”.