A montra, renovada mensalmente com motivos temáticos, convida a entrar e o interior da Drogaria Moderna é um diálogo entre ontem e hoje, um local onde tradição e inovação se enlaçam em harmonia, um espaço onde objetos de outros tempos adornam e dão um ambiente de época, onde produtos já pouco habituais, como o restaurador Olex ou a pasta dentífrica Couto repousam nas prateleiras de madeira escura maciça ao lado de novos artigos de marcas portuguesas e várias da região.
A completar 75 anos em 2025, na Drogaria Moderna a memória e a novidade respiram lado a lado. Ao balcão está João Paulo Pereira, 57 anos, olhos azuis curiosos e atentos às novas tendências, sem perder de vista as fórmulas químicas escritas em letra redonda e cuidada num caderno de capa preta e folhas que o tempo amareleceu, conhecimentos que o pai acumulou durante os anos em que foi ajudante de farmácia, antes de fundar o estabelecimento.
Desde a semana passada, quando a Câmara da Covilhã, no dia 14, aprovou a denominação, que a Drogaria Moderna se tornou a primeira Loja com História do concelho. Foi João Paulo quem deu fez a proposta ao município, a que se seguiu um processo de mais de um ano a reunir o dossier de candidatura, com o apoio da Associação Empresarial, e a aguardar os trâmites e a avaliação por parte da comissão para o efeito.
O essencial estava na loja e no arquivo da loja herdada do pai, onde João Paulo nunca ponderou trabalhar. Documentou os múltiplos objetos que se mantêm desde que a drogaria foi fundada, faturas, fotografias, fórmulas, juntou ao processo as evidências do que sempre se empenhou em preservar e o reconhecimento do executivo foi unânime.
O telefone pesado e preto de disco é o de sempre, a máquina de escrever está à vista, a registadora National, já não funcional, tem lugar de destaque, atrás da porta do laboratório os frascos de vidro com essências, ceras, óleos, carnaúba, naftalina, parafina, pigmentos ou resinas estão alinhados e prontos a usar. Estão expostos prémios recebidos há décadas e a volumosa lista telefónica de 1953, com os contactos comerciais de Portugal e das antigas colónias. As prateleiras de madeira robustas sustentam histórias em forma de produtos. No alvará passado à Drogaria Moderna há quase 75 anos lê-se que é um estabelecimento “insalubre, incómodo e perigoso”, em virtude dos manipulados que ali eram preparados e vendidos a granel.
Para João Paulo Pereira a atribuição do selo Loja com História é um reconhecimento do seu empenho em manter “a essência” do estabelecimento, que tem associados alguns privilégios relacionados com taxas ou proteção do espaço, mas o proprietário considera que a classificação valoriza o conjunto do edifício e a cidade, porque “é representativo da cultura, do património, da história da cidade”.
“A Drogaria Moderna mantém a traça antiga, tem um acervo documental e mobiliário de valor histórico riquíssimo. Vale a pena visitar só pelo equipamento, associado ao comércio tradicional que tem”, destaca o vereador com o pelouro do Turismo, José Miguel Oliveira, segundo o qual a passagem do tempo no estabelecimento “quase não se nota”.
O autarca informa que o processo de certificação “não é fácil” e estão mais dois em fase de avaliação. Quando existirem alguns com esse selo, a intenção é criar um roteiro. “Houve um trabalho no sentido de manter a memória do espaço, tornando-o um espaço de visitação”, elogia José Miguel Oliveira.
Os futuros desenhados por João Paulo Pereira nunca passaram pela drogaria do pai, onde ao crescer não esteve muito presente. A rebeldia e a despreocupação da juventude sobrepunham-se. A austeridade do pai colidia com quem queria desfrutar da vida. Porque Acácio não lhe queria pagar um vencimento, o filho chegou a trabalhar na tinturaria de uma fábrica. Foi já perto dos 30 que o pai, adoentado, lhe pôs “as cartas na mesa” e começou a trabalhar na loja.
Durante os cerca de sete anos que teve o pai ao lado aprendeu muito do conhecimento que evidencia quando desfia de cor para os clientes fórmulas, quantidades, propriedades dos produtos, dá conselhos de como os fazer render mais, dos cuidados a ter, do que fazer para ter o efeito pretendido. O resto foi acrescentado com a curiosidade que revela e com a troca de impressões com os clientes, que normalmente vão a uma drogaria “à procura de soluções para problemas” e esperam recomendações.
“Aprendo muito com os clientes. É um vai e vem de conhecimento”, diz João Paulo, que descobriu uma nova utilização para a resina loura quando começou a receber encomendas de bailarinas para passarem nas pontas e não escorregarem.
Na loja não faltam apontamentos de modernidade, mas subtilmente enquadrados no ambiente, como o grande painel digital, numa moldura em madeira feita por João Paulo, a caixa registadora, dissimulada num compartimento, ou as caixas personalizadas de diferentes gramagens em que se começou a vender o açafrão.
Há 27 anos atrás do balcão, viu muito comércio fechar, mas a drogaria soube reinventar-se, utilizando como alavanca ser um guardião do passado. Por um lado, João Paulo tem os produtos icónicos, mesmo os que saem pouco, porque “dão logo nas vistas”. Por outro, está alerta para o que surge de novo e para as modas. Uma seção da loja, só com produtos para cuidar da barba, ou outra com artigos ecológicos a granel, espelha essa atenção à procura. O atendimento personalizado é também uma das chaves do sucesso, considera.
Outra explicação prende-se com o ‘online’, onde tem loja desde 2012 e, durante a pandemia, fez a diferença. “Eu apanhei o comboio do tecnológico e do digital”, acentua. O negócio na Internet já representa mais de metade da faturação. Vende para todo o país e todos os dias despacha encomendas. O interesse em explorar ferramentas, programas, em experimentar e editar facilitam-lhe a presença nas redes sociais, para onde faz os próprios vídeos ou diretos com múltiplas câmaras. “Cresci na loja física e no digital”, refere.
Constantemente entre e sai gente. O carteiro, fornecedores, os clientes de sempre e os mais recentes. Honorato Berto, 77 anos, trabalhou na mesma rua 55 anos e veio comprar cola. Antes a loja “tinha mais valências”, quando vendia preparados medicamentosos e era “o hospital da rua”.
Basílio Nunes, 68 anos, é “restaurador, não envernizador” de madeiras, antiguidades e arte, por isso é aqui que encontra o que lhe permite exatamente o efeito pretendido. Discute com João Paulo materiais, produtos, quantidades, ordem de mistura e opta por levar a granel o que vai preparar em casa.
Eugénia Santos, 44 anos, estuda Biomedicina e “novas drogas à base de plantas”. Um dia a montra chamou-lhe a atenção, por ter um creme antigo lhe fazia lembrar os avós, entrou e percebeu que tinha ali resposta para muitas das suas necessidades. Leva óleo de alecrim, óleo de rícino para hidratar o cabelo, por serem produtos “mais naturais”. Na loja diz que tudo lhe chama a atenção.
João Paulo nota uma nova vaga de clientes muito jovens, que querem comprar a granel e fazerem eles próprios artigos de cosmética, saboaria ou velas. A legislação não lhe permite preparar manipulados, mas ensina como se faz em vídeos que partilha. “Existe esta tendência nos mais jovens para comprarem o que não é massificado”, nota. Outros objetos, como candeeiros a petróleo também têm tido muita saída. “Há coisa que caíram em desuso e se voltou a vender”, constata.
A Drogaria Moderna é um abraço de memória. Hoje já não vende os químicos para as casas de fotografia, para a indústria têxtil ou para as cabeleireiras fazerem as permanentes. A intenção de João Pereira é, aos ombros do passado, seguir à frente, para abrir caminho.