“Fiz 80 anos e dois doutoramentos”

Foi com humor que Sérgio Godinho agradeceu o grau Honoris Causa atribuído pela UBI. E prometeu continuar a ser um “vagabundo cultural” que possa fazer a diferença

“Vou continuar a pisar os palcos. Continuar a vida de artista sem saber até quando. Está tudo em aberto”. Foi esta a garantia deixada na passada quarta-feira, 8, no grande auditório da Faculdade de Ciências da Saúde da UBI, por Sérgio Godinho, que recebeu da universidade covilhanense o Doutoramento Honoris Causa.

Sempre sorridente, bem-disposto, mas já com algumas dificuldades de locomoção, esta figura incontornável da música e cultura portuguesa, com trabalho no campo não só da música como da literatura, teatro ou cinema, brincou, com o humor que sempre o caraterizou, depois de, no ano passado, também ter recebido semelhante distinção da Universidade de Aveiro. “Fiz 80 anos e dois doutoramentos”, gracejou Godinho.

O cantor mostrou-se orgulhoso de receber este grau de ensino “logo da UBI” e da Covilhã, “que me é tão próxima por razões afetivas e familiares”, e garantiu que não precisa “de mais universidades para me sentir valorizado”. Recordou que estudou economia no Porto, psicologia em Genéve (Suíça), curso que não concluiu, e que se perdeu “um economista, um psicólogo” para se ganhar “uma espécie de vagabundo cultural”, que se dedicou à “base de todas as outras artes, a música”, para através dela “ter voz própria para fazer pequenas diferenças”. Um papel que prometeu continuar a desempenhar. Sérgio Godinho lembrou a relação indissociável entre palavra e música, uma “união de facto” que dá origem à canção, e recordou muitos dos que se cruzaram com ele, o influenciaram, e trabalharam consigo, desde o inevitável Zeca Afonso, “que abriu janelas onde nem paredes havia”, Manuel Freire, Carlos Paredes ou José Mário Branco, e mais recentemente artistas como Jorge Palma, Kalú, Capicua ou Samuel Úria, vendo futuro na música nacional.

Sérgio Godinho nasceu no Porto, a 31 de agosto de 1945. Com cerca de 20 anos foi viver para o estrangeiro, tendo passado por países como Suíça, França, Países Baixos, Brasil e Canadá. Ainda no estrangeiro, fez a sua estreia discográfica, em 1971, com o álbum “Os Sobreviventes”, inspirado na resistência ao regime do Estado Novo e que acabou por ser alvo da censura em Portugal. Também o seu segundo disco, “Pré-Histórias”, enfrentou restrições semelhantes. Regressou ao país após o 25 de Abril de 1974, tornando-se um dos protagonistas da explosão cultural registada no período histórico do início e da consolidação do processo democrático. A sua intervenção artística e social manteve-se fiel à promoção do pensamento crítico, intervenção social e promoção da cidadania ativa. A sua aclamada carreira abrange, além da música (escrita e composição), a produção literária – incluindo a infantojuvenil –, a representação e a realização de cinema e vídeo. Mantém, há mais de 50 anos, uma impressionante produtividade com dezenas de produções na forma de álbuns de estúdio, álbuns ao vivo, álbuns em colaboração com outros músicos, coletâneas, registos coletivos e bandas sonoras para filmes e séries.

Todo este legado foi recordado pela sua madrinha de doutoramento, a filósofa, escritora e jornalista Anabela Mota Ribeiro, que num discurso iniciado em francês, lembrando a influência que este país teve na vida artística de Godinho, recordou que no início de carreira foi nessa língua que o cantor começou a produzir algumas músicas, “para que não soassem a Zeca Afonso”, reconciliando-se com “a língua materna” numa altura de maior abertura cultural no pós-25 de abril. Anabela Ribeiro alertou ainda para a atualidade das letras e canções de Godinho face aos temas fraturantes da sociedade, como a democracia ou problemas como a habitação.

Já a reitora da UBI, Ana Paula Duarte, enalteceu o “momento especial” da distinção a Godinho, não só pelas oito décadas de vida e mais de cinco décadas de carreira, mas pelo “contributo inigualável para a cultura, a música e as artes”. A reitora lembrou “a voz ativa da defesa de um Portugal mais justo, mais inclusivo, mais livre”, num momento em que “pairam algumas nuvens sobre as conquistas civis, políticas e sociais alcançadas nas últimas décadas”. Para Ana Paula Duarte, o cantor é “um exemplo do engenho e da arte, da capacidade de criar, de inovar, de pensar, de ousar, de agir”, um exemplo que a UBI procura transmitir “diariamente” aos seus alunos. “Que o seu percurso e exemplo inspirem as novas gerações, neste que é o seu primeiro dia do resto da sua vida na família ubiana. Que nos ajude a afirmar uma universidade dinâmica, inclusiva e de olhos postos no futuro”.

UBI não pode ser apenas “executora das políticas da tutela”

Numa cerimónia que também serviu para assinalar o arranque do novo ano académico, a reitora da UBI deixou várias mensagens, em especial, direcionadas ao poder central.

Enaltecendo o crescimento da instituição ao longo dos anos, a solidez do projeto UBI, que “nos tempos que correm é uma mais-valia inquestionável para toda a região, transformando a Beira Interior num polo de conhecimento, inovação e atração para cidadãos e empresas”, Ana Paula Duarte lembrou os 1250 novos estudantes que este ano chegaram à cidade através de todas as fases do concurso nacional de acesso ao Ensino Superior, os mais de 200 através de concursos especiais para alunos internacionais, e cerca de 200 em programas de doutoramento, além de 800 no segundo ciclo. “Somos uma universidade atrativa, viva, com oferta diferenciada e de excelência. Mas importa analisar ao detalhe algumas ofertas académicas, equacionar a sua disponibilização no próximo ano letivo, bem como identificar os cursos, mas adaptados ao mercado do trabalho, às exigências da sociedade e aos avanços tecnológicos”, disse Ana Paula Duarte.

A reitora defendeu uma estratégia “que nos permita crescer de forma sustentada, não numa lógica mercantilista, mas num quadro que concilie a história e identidade da UBI com os desafios que se colocam ao Ensino Superior”, o “reforço do posicionamento no contexto nacional e internacional” com o aumento de alunos internacionais, a ligação das diversas estruturas da UBI com a comunidade académica, e um outro olhar do Governo para instituições que estão mais longe das grandes cidades. “A universidade não se pode transformar em mero executor de políticas determinadas ou impostas pela tutela. O Ensino Superior precisa de estabilidade, de planeamento, mas acima de tudo, de ser integrado nos processos de decisão” disse, apontando, por exemplo, a necessidade de ter da tutela “compromissos claros e definidos no tempo sobre o financiamento” do Ensino Superior.

Ana Paula Duarte afirmou ainda ser necessário criar “condições de promoção para fixar e atrair talento para regiões de menor densidade populacional” e que as próprias regras de acesso ao Ensino Superior devem ser revistas. “Não se advoga uma via de facilitação, mas não cederemos em caminhos que possam significar o estrangulamento e a viabilidade de instituições localizadas longe dos grandes centros urbanos” avisou a reitora da UBI.

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