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Folha em branco

“Como foi bonita a festa... se foi... especialmente a descida da avenida, e como eu gosto de descer a avenida”

O drama de quem escreve. Ou de quem tem de escrever. Olhar para a folha e ela, a sacana, a fechar-se em copas, não transmitir uma ideia, não soltar um som que seja, e que signifique um princípio de inspiração, não esboçar sequer um olhar. Nada. Estou aqui a mirá-la, numa manhã de ressaca da festa… ah, como foi bonita a festa… se foi… especialmente a descida da avenida, e como eu gosto de descer a avenida. Digo-vos, ou melhor escrevo-vos, e nela incluo esta mal-agradecida folha em branco, a que dedico tanto do meu tempo e não me dá sequer um sinal, que descer a avenida é um dos meus passatempos favoritos. E não pensem que é descer a avenida nesta ou naquela data especial. Nada disso. Gosto de descer a avenida. Ponto. E faço-o amiúde quando estou na cidade. Calcorrear aqueles largos passeios com majestosas ilustrações em pedra portuguesa, espreitar as montras das marcas de luxo e perceber quanto custa aquela carteira verde “có-có de bebé”, pendurada naquela manequim de loja que apresenta um vestido comprido feito de tiras de estore de janela, ah… como gosto. De mirar de alto a baixo os agentes de polícia e de segurança especados à porta das joalharias, que se encostam umas às outras, pela avenida abaixo. Oh, se sim… gosto. Muito. De cruzar-me com milhares de turistas, com aparência de seres munidos de bom “graveto” para ali gastarem como querem, muitos deles falando a língua de Pessoa, perdão, a de Drummond de Andrade. Gosto mesmo… são aos magotes, alegres e divertidos, prometendo gastar este mundo e o outro, e também eles… carregando dezenas de sacos e embrulhos descendo a avenida rumo aos hotéis de cinco estrelas. Ah… como gosto. Perceber como em muitas fachadas dessas lojas se arrumam pequenos sacos-cama e velhos e imundos cobertores, onde ao fim do dia, se deitam dezenas de pessoas sem casa e sem comida, sem dinheiro e sem… nada. Ah… como gosto de descer a avenida. Estás a ouvir folha em branco?! Gosto. E faço-o há muitos anos. Comecei em criança quando ali passava boas temporadas no número duzentos e vinte e nove. De férias, em casa de família. Não nasci ali, mas sempre olhei para esta cidade como se ela fosse a minha cidade. Desde muito cedo, quando comecei a descer a avenida. Lembro-me tão bem de ali aos Restauradores comprar um isqueiro para acender os meus primeiros e furtivos cigarros. Foi ali por volta de 74, tinha treze anos e aventurava-me a pisar as calçadas da Liberdade. Depois nunca mais parei. De descer a avenida. E gosto de o fazer incógnito, muitas vezes de forma solitária, apreciando o desenrolar dos dias, muitos houve em que me sentei num banco da avenida e me detive por momentos a sentir o verde-vermelho dos semáforos, e tentar contar o número de veículos que passavam diante dos meus olhos. Oh, como é bom descer a Avenida. E vivê-la, E tu folha em branco, tens algo para me contar?

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