António Rodrigues de Assunção
Há dias, deparei-me, nas estantes da Biblioteca Municipal com várias obras da autoria de José Vicente Milhano (1912-1995). Uma agradável e também surpreendente surpresa. Surpresa advinda não do facto dele ser autor, mas da constatação do número significativo de obras que publicou e da rica variedade de temas e assuntos nelas abordados e tratados. Desde o opúsculo «O Rebate», uma edição da bem conhecida Casa Milhano, publicado em meados da década de 1940 e dedicado genericamente aos problemas sociais, com realce para o problema da habitação na Covilhã industrial e operária. Este livrinho valeu a Vicente Milhano, que era Fiscal de Obras na Câmara Municipal da Covilhã desde 1936, a instauração de um Processo Disciplinar em 2 de Outubro de 1946, na sequência do qual foi demitido do seu cargo de funcionário da Câmara. Naqueles tempos, era presidente do Executivo o Dr. Carlos Coelho, o qual ter-se-à sentido atingido por um dos subtítulos de “O Rebate”: “A Habitação e o sr. Dr.”, que mais não era do que uma análise realista e impiedosa dos gravíssimos problemas habitacionais que atingiam o proletariado da cidade.
Além deste, José Milhano alargou o seu talento de homem de vastas leituras e de escritos por outras obras e outros estilos, onde se inclui a ficção, embora predominem largamente as preocupações sociais e cívicas: ”Covilhã Doutrora”, “Injustiça”, publicado em 1946 e que foi objecto de apreensão pelas autoridades, e a chamada do próprio autor à PIDE; «O Progresso Beirão e o Problema da Habitação», apresentada no VIII Congresso Beirão realizado na Guarda em 1948; «Perspectivas do mercado da Habitação na província», apresentada no II Colóquio Nacional da Indústria da Construção Civil, em 1973; já no domínio económico, Vicente Milhano participou, em 1953, no IX Congresso Beirão, realizado em Viseu, onde apresentou duas Comunicações: uma, subordinada ao tema «Turismo na Serra da Estrela»; e outra intitulada «Para o Estudo da Descentralização do País»; em 1965, intervindo no X Congresso Beirão, em Coimbra em 1965, voltaria ao tema do Turismo na Serra da Estrela, o qual lhe era muito caro: «Fomento Económico da Serra da Estrela»; no mesmo Congresso, apresentou ainda uma comunicação sobre o problema da Educação, intitulada: « A Educação nas Beiras».
José Milhano era, claramente, um homem e um cidadão de largas vistas e de forte sentido cívico. Leitor ávido e apaixonado pela pesquisa e pelo estudo atento e crítico dos problemas, dele se pode dizer que sentia profundamente o pulsar do País e da sua terra natal. Voltando à sua intervenção pública, numa época difícil para Portugal e para quem ousava levantar a sua voz crítica e propositiva, Milhano esteve presente no I Congresso dos Economistas, realizado em 1957, no qual falou sobre os problemas da concentração industrial; e no II Congresso, já em 1958, abordou temas como «A Indústria de Lanifícios e de Vestuário» e ainda sobre a indústria de Espelhagem e de Biselagem. Por fim, no âmbito da sua actividade como comerciante, teve intervenção activa no Encontro realizado em 1971 da Corporação do Comércio, que teve lugar na Covilhã, e no qual se espraiou sobre o tema «A vida de Comerciante e suas perspectivas na Província».
Vicente Milhano deixou ainda a sua marca criativa na ficção: – «Rosa da Covilhã» – Novela Tradicional e Social, publicada em 1948; e «História Incompleta de um Homem», publicada em 1951. Ainda no domínio do seu compromisso cívico, Vicente Milhano revelou aprimorada preocupação pela cidade, pela sua valorização e defesa do seu rico património cultural. Exemplo disso é o seu livrinho «Covilhã – Quem defende o Património», publicado em 1981, já depois do 25 de Abril. E foi também depois do 25 de Abril que, num acto de imensa justiça e devida homenagem, que foi reintegrado, logo no dia 26 de Abril, no seu lugar de funcionário camarário.
Uma obra rica! Eu diria que Vicente Milhano foi, ele próprio e a sua vida, uma “obra” viva, uma referência para todos nós e para a juventude de hoje e de sempre. Uma obra digna de um homem que, desde os seus seis anos e já órfão de pai, se viu a braços com a necessidade de contribuir para o sustento dos seus quatro irmãos mais novos através do trabalho numa fábrica de lanifícios, pois, como testemunha um dos seus filhos, “sendo pobre, tinha quatro irmãos mais novos para sustentar”. Tal não o impediu, ele, amante do estudo, de uma vez concluída a 4.ª classe, se inscrever num dos Cursos da Escola Industrial Campos Mello, onde teve como mestres Ernesto de Melo e Castro e o professor António Lopes. Era um apaixonado pela aprendizagem e pelo estudo, gosto que procurou incutir nos seus filhos.
Vicente Milhano, um Homem para nossa memória.