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“Maré negra, por muito que a pintem de verde”

André Leitão

(Médico neurologista CHUCB)

A febre das grandes centrais fotovoltaicas chegou em força à Cova da Beira, marcando já indelevelmente a nossa paisagem.

A localizada na Quinta Branca (Boidobra) fez já correr muita tinta sobre a devastação provocada pela sua construção. O desmatamento de dezenas de hectares de floresta autóctone, arrasada para construir uma central solar, descaradamente publicitada como uma “energia verde”, cedo mostrou os seus impactos. A falta da cobertura vegetal – e do seu papel essencial na retenção e infiltração de água – levou à erosão dos solos e às enxurradas do último Inverno, que deixaram num estado vergonhoso a EM 506. A anunciada requalificação da estrada pelo município covilhanense segue um padrão comum no investimento privado no nosso país: serão os nossos impostos a pagar a impreparação e a falta de um adequado plano de drenagem hídrica que deveria ter sido exigida à empresa construtora.

Foi uma imagem ilustrativa dos tempos que correm: destruímos impensadamente a Natureza e logo sofremos as consequências da sua falta. Assim se pôs a nu a fragilidade óbvia destes projectos de grandes centrais solares que estão a invadir o país, promovidos pelo anterior Governo como um grande contributo nacional no combate ao aquecimento global. Mas ao serem licenciados em zonas ambientalmente valiosas, o dano ambiental causado pela sua construção poderá ser bem superior ao seu benefício. Como exemplo da barbárie em curso, estima-se em mais de 30.000 o número de sobreiros (supostamente uma espécie protegida) a serem abatidos pelas mega-centrais solares já aprovadas. E as alternativas de colocação existem: poderiam ser instaladas em zonas ambientalmente degradadas (p. ex.º dominadas por vegetação invasora), zonas e edifícios industriais abandonados (com solos já impermeabilizados) e, obviamente, no telhado dos nossos edifícios. Para esta última hipótese ganhar outra dimensão era necessário uma estratégia governativa mais sensata, com estímulos à microprodução descentralizada pelos cidadãos em suas casas (que actualmente são pagos de forma irrisória se o fizerem), em vez de favorecer estes enormes parques solares, que darão dividendos, convenientemente, às grandes empresas envolvidas. Os estímulos governamentais para construção destes empreendimentos são muitos, incluindo compensações financeiras às autarquias (que assim mais dificilmente levantarão entraves), simplificação de licenciamento e dispensa de necessidade de avaliação de impacto ambiental, esse grande incómodo, para projectos inferiores a 100 hectares.

Se quiséssemos realmente combater a crise climática e ambiental, deveríamos ter medidas efectivas para melhorar a eficiência energética e de redução das nossas necessidades, em vez de apenas querer produzir cada vez mais energia, a todo o custo. Foi a sobreexploração de recursos e do equilíbrio do planeta, sempre procurando o lucro máximo, sem pensar no valor intrínseco do que é destruído, que nos trouxe à catástrofe ambiental em curso. Não será insistindo no mesmo caminho que chegaremos a outro resultado.

Então, se as intenções dos bem-pensantes da capital são estas, quem nos poderia valer? O poder local, pelo conhecimento do território, deveria ter uma estratégia para o seu ordenamento e ser o principal agente da sua defesa. Transformar terrenos agrícolas produtivos e áreas de floresta autóctone em parques solares é comprometer o futuro, é tudo menos sustentabilidade. É danificar irremediavelmente a paisagem, é destruir potencial turístico (a Grande Rota do Zêzere, um percurso pedestre de longo curso, atravessa agora duas destas centrais no nosso concelho), é perder a biodiversidade que existia nestes carvalhais, é degradar solos e perder capacidade de retenção de água.

Mas a Câmara da Covilhã licenciou estes parques, dizendo que, se todas as outras entidades nacionais consultadas já tinham dado o seu parecer favorável, o que poderia fazer? Pôncio Pilatos não o diria melhor. É verdade que a nova lei dificulta bastante a oposição aos projectos, mas poderia ter sido fundada uma recusa de licenciamento no próprio Plano Director Municipal da Covilhã – “Consideram-se usos e actividades incompatíveis os que provoquem um agravamento das condições ambientais e urbanísticas, podendo ser razão de recusa de licenciamento (..) actividades que (..)configurem intervenções que contribuam para a descaracterização ambiental, paisagística, morfológica (..) – artigo 5º-B,d).

A proximidade destas centrais fotovoltaicas da A23 dá-lhes uma enorme visibilidade à chegada de quem nos visita e se depara com estas manchas negras numa região que esperariam ambientalmente equilibrada. Soluções “verdes”? Só se for pela cor do dinheiro que movimentam.

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