Chamavam-lhe o “rei dos míscaros”, conta António Caronho, de 71 anos, que olha com desolação para a envolvente a Orjais, fustigada pelo incêndio de agosto de 2022, onde agora é difícil apanhar os cogumelos a que estava habituado nesta altura. Um dos seus passatempos é escrever poemas e hoje, na primeira sessão a que veio do projeto MentAldeias, entre conversa e dicas para exercitar a memória, participou, com mais 13 conterrâneos, na dramatização sensorial da “Balada da neve”, de que alguns recordam dos livros da escola.
O “grande susto” provocado pelas chamas e “a tristeza” das consequências contrastam com este convívio semanal, a que António dá “nota 18 em 20” e o deixa com vontade de voltar.
O projeto, que visa desenvolver atividades de apoio psicossocial e de bem-estar para melhorar a saúde mental das populações de seis localidades afetadas pelo incêndio de 2022 na Serra da Estrela é o principal foco do projeto MentAldeias, promovido pela Mutualista Covilhanense, e começou há três meses em seis localidades.
Maria Inácio, 78 anos, já veio várias vezes às sessões dinamizadas no edifício da Junta de Freguesia e aprecia a oportunidade de fugir da sua rotina, muito recolhida em casa, tal como os vizinhos. O incêndio continua muito presente nas conversas e na memória. Um “dia horrível”, que “não há boca que explique a aflição” de ver as labaredas por perto. As horas passadas no projeto são a antítese dessa tensão vivida, pela descontração e troca de impressões e informações.
“Só o convívio, já é muito bom. Estas duas horas aqui escuso de estar sozinha em casa, a olhar para a televisão”, salienta Maria Inácia.
Ilda Maricoto, 69 anos, veio “passar o tempo com as vizinhas”. “Há aqui pessoas que quase não vejo todo o ano, porque se mete tudo em casa. Hoje foi diferente. Gostei de estar a conviver e com a mente distraída. É uma coisa diferente do meu dia a dia”, sublinha.
“Lá em cima”, que é como quem diz na Barroca da Eireira, onde viveu quase toda a vida, Fernanda Saraiva, de 67 anos, confrontou-se com as chamas a lamberem as paredes e a deixarem um buraco no sótão, no que foi “um dia de terror”. Mudou-se para o centro da aldeia, porque no sítio onde cresceu, e onde sobrava paisagem, faltava gente e transportes, mas percebeu que na malha urbana as pessoas também vivem muito isoladas. “Passo o tempo em casa, sozinha. Cada um está na sua casa”, conta, a aproveitar os raios de sol que quebram o ar gélido.
Incitada por uma vizinha, veio pela primeira vez a uma sessão do projeto que combina a animação sociocultural, a atividade física, o apoio psicológico, iniciativas culturais e encontros gastronómicos. “Fiquei com vontade de voltar para a semana, porque foi um bocado bom que aqui passámos”, considera Fernanda Saraiva. Saber a serra de que é indissociável mutilada “está sempre na memória”, mas não enquanto esteve entretida a ouvir dicas sobre como “ginasticar a memória”, as várias partilhas e estratégias dos conterrâneos ou a assistir, de olhos vendados, à narração da “Balada da neve”, para estimular todos os sentidos.
Dar ânimo
A coordenadora do projeto, Isabel Malaca, apoiada por estudantes de psicologia, espalha creme nas mãos dos participantes, para sentirem o odor a natureza, bate os pés no verso em que se fala nos passos, utiliza um borrifador para simular a altura em que é mencionada a chuva, utiliza ventoinhas para reproduzir o vento, atira-se caruma para cima dos habitantes de Orjais quando são referidos “os pinheiros no caminho”.
O objetivo “não é recordar o mal que passaram, mas dar-lhes ânimo, momentos de alegria e de partilha”. É “retirá-los das suas casas, para que tenham sempre a curiosidade sobre o que vai acontecer em cada dia”, enfatiza Patrícia Capelão, animadora sociocultural. “Estes são dias diferentes e isso é que importa, porque vamo-los vendo mais abertos”, frisa.
Atualmente o projeto abrange 80 pessoas, mas o objetivo é chegar às 150 durante os 12 meses de duração da intervenção no Sarzedo, Verdelhos, Orjais, Aldeia do Souto, Vale Formoso e Atalaia.
O presidente da instituição, Nelson Silva, comenta que a Associação de Socorros Mútuos da Covilhã já atuava em alguns destes territórios, através da Unidade Móvel de Saúde, e que por isso conhece as caraterísticas e necessidades das pessoas, mas destaca o impacto do grande incêndio na “estabilidade emocional” das populações e da importância de “complementar, com um reforço na componente psicológica e física”, a resposta descentralizada que era dada.
“Numa situação de calamidade, a grande preocupação das pessoas tem que ver com as infraestruturas, é normal que assim seja, mas depois há o impacto que tem sobre as pessoas, neste território maioritariamente habitado por gente com uma idade avançada, isolada, e habitualmente esta parte psicossocial fica de lado”, salienta Nelson Silva.
O MentAldeias, apresentado na sexta-feira, 05, mas no terreno há três meses, conta com uma equipa multidisciplinar.
A psicóloga responsável pelo projeto financiado pela Fundação La Caixa e pelo Banco BPI, Isabel Malaca, frisa que muitas das pessoas afetadas pelos incêndios já sentiam solidão, tomam antidepressivos e ansiolíticos e acontecimentos na vida como o episódio do incêndio “pode exacerbar estas sintomatologias”.
Nesta primeira fase a equipa está mais centrada na intervenção comunitária, para “empoderar as pessoas ao nível das relações de vizinhança e de sentimentos de pertença à comunidade” e adaptar a resposta multidisciplinar às especificidades de cada uma das localidades e ao tipo de apoio a que cada população está mais recetiva.
A intenção é primeiro potenciar o conhecimento e estabelecer uma relação de confiança mútua, que “depois poderá afunilar para acompanhamentos psicológicos individualizados”, estando já algumas situações sinalizadas, explica Isabel Malaca.
A psicóloga nota nas pessoas “a emoção daqueles dias e a tristeza de verem as áreas destruídas” e vinca que o que se pretende é que “percebam que, além de perdas que possam ter tido na vida, a vida continua a valer a pena ser vivida e proporcionar momentos prazerosos que não apagam mágoas nem dores, mas que sirvam para empoderar as pessoas a seguir em frente”.
Apesar “do estigma” que ainda existe associado à saúde mental, Isabel Malaca sublinha que a adesão tem sido positiva, que esses aspetos também se trabalham através das restantes atividades e que a equipa quer que “as pessoas se sintam valorizadas” e que os profissionais e voluntários estão no terreno “para as valorizar”.
O MentAldeias, dinamizado em colaboração com as juntas de freguesia, que ajudam a sinalizar pessoas, destina-se a todas as idades, embora a maioria dos utentes sejam maiores de 65 anos.
No final está prevista a apresentação de um evento e também a publicação do Caderno D´Aldeias, uma recolha etnográfica informal de memórias coletivas de cada localidade.