Quem se curva diante dos opressores, mostra o traseiro aos oprimidos, dizia o mordaz Millôr Fernandes. Esta semana, uma sondagem publicada pelo Expresso indicava que 57% dos portugueses considera Portugal uma democracia plena ou com poucos defeitos, enquanto 36% lhe atribui muitos defeitos. Mais preocupante são as opiniões sobre a classe política. São 74% os inquiridos que discordam que a maioria dos eleitos se preocupam “com aquilo que pessoas como eu pensam”.
Talvez a observação de Millôr ajude a sintetizar a percepção reflectida na sondagem do ISCTE-ICS. Depois dos beijos, abraços e sorrisos das campanhas eleitorais, a maioria dos políticos tende a afastar-se de quem os elege e a viver numa bolha de privilégio, fora do mundo real, até o folclore regressar quatro anos depois. Há quem se esqueça dos interesses daqueles que representam, em jogos de cintura partidários que em nada dignificam a sua credibilidade. As portagens são um desses exemplos, em várias cores, ao longo dos anos, em que poucos saem beneficiados no retrato.
E quem fala na política, fala em outras áreas. Quando a acção é a negação da palavra. Quando o gesto é a contradição do discurso. Quando essa dissonância é recorrente, instala-se o descrédito, a esperança é minada, gera fundamentada desconfiança e pode abrir brechas que vão agravar ainda mais os problemas.
Quem diz os políticos, diz os patrões que ostentam, mas sonegam direitos elementares. Refiro-me a muitas outras tribunas, púlpitos, até a jornalistas e outros agentes sociais que se deslumbram com a proximidade a quem decide e, ao esquecerem-se de escrutinar, questionar, exigir, se afastam daqueles que deviam defender, ouvir, proteger, dar voz.
Um outro estudo, divulgado na semana passada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, conclui que 60% dos pobres no país trabalha, um terço com vínculos estáveis e outros precários. Também antecipa que pessoas que saíram de uma situação de pobreza, normalmente estrutural, vão regressar a essa condição, com as consequências da pandemia.
Ao mesmo tempo, percebe-se que raramente o mérito permite fazer mover o elevador social. Existe a ideia de que quem tem recursos financeiros, tudo pode. Até encontrar artifícios para protelar “ad aeternum” decisões judiciais.
Por cada caso de nepotismo, de clientelismo, de promessas não cumpridas, de alheamento, por cada suspeita de corrupção, agrava-se o descontentamento que torna as pessoas mais susceptíveis às abordagens falaciosas de quem defende retrocessos. Por cada caloroso discurso público que na prática se traduz em frieza no carácter e falta de empatia com as pessoas comuns e os problemas reais dos cidadãos, cava-se o fosso entre um nós e um eles que não devia existir.
A democracia, até prova em contrário, é o pior dos sistemas, à excepção de todos os outros. Se lhe percebemos indício de doença, cabe-nos a nós, cidadãos, cuidar dela, para que se apresente o mais saudável possível.
Se assim não for, abre-se espaço para charlatães pouco interessados em factos ou estatísticas, mas em inundar o espaço público de nuvens e ampliar excepções para que pareçam a regra, para dessa forma justificar práticas de intolerância e de exclusão. Aqueles oportunistas apostados em capitalizar legítimos descontentamentos e que, parafraseando Millôr, são como vendedores de carros em segunda mão que conseguem convencer pessoas que o estado do automóvel é uma coisa que melhora com o uso.