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O arroz do domingo que um chef espanhol trouxe para a Covilhã

Todos os domingos, à hora de almoço, cumpre-se a tradição. Caixas e tachos enchem os restaurantes que confecionam Arroz à Valenciana, já chamado de “Arroz à Covilhanense”. Terá vindo, na década de 60, pela mão de um cozinheiro que trabalhou no Montalto

São cerca de 11:30 de domingo quando se ultima a preparação do Arroz à Valenciana no restaurante A Traineira, na Covilhã. Pronto a servir está um tacho de tamanho imenso com dez quilos de arroz e carnes de frango, vaca e porco cozidas e outro de dimensões iguais quase pronto.

Na bancada, uma verdadeira linha de montagem: também já estão prontas as ervilhas, as salsichas, os pimentos morrones, o chouriço e os camarões. Foi tudo devidamente preparado no dia anterior para ser acrescentado às caixas e tachos dos clientes que começam a chegar para levar o Arroz à Valenciana para o almoço. É a tradição a cumprir-se.

Tradição essa que começou na década de 60 quando chegou à Covilhã, pela mão de Artur Almeida Campos, empresário de restauração e fundador do emblemático Café Montalto, um chef espanhol chamado José Gonzalez Rivas e que trouxe a iguaria para a Cidade Neve. “Esse homem veio fugido de Espanha para Portugal. Foi em Lisboa que o ‘Ti Artur’ o encontrou e o trouxe para a Covilhã”, diz Aníbal Sanches, 70 anos, chefe de cozinha que trabalhou diretamente com o chefe Rivas, tendo-o conhecido em 1972 no Montalto.

O chef Aníbal afirma que o domingo sempre foi o dia do Arroz à Valenciana devido à disponibilidade das pessoas para o ir buscar. “Antigamente trabalhava-se sábado o dia todo, depois começou a semana-inglesa e trabalhava-se só da parte da manhã. O domingo era o melhor dia, as pessoas não trabalhavam e tinham tempo para ir buscá-lo”, explica Aníbal Sanches.  “Sempre se venderam muitos quilos de arroz ao domingo”, assegura, fazendo referência a antigas casas onde o arroz começou a ser mais popular, tais como o Montalto, Solneve e Pintado. “Nessa altura vendiam-se bem os mil quilos de arroz”.

E se a tradição é de comer o arroz ao domingo, também se junta o facto de ser encomendado e levado para casa. “A venda em restaurante nunca foi muito grande, só por exemplo gente que vinha de fora e não conhecia. E hoje também será mais ou menos dentro disso”, conta.

Rúben Faustino, 33 anos, trabalha há cinco anos no restaurante Montiel, uma das casas mais antigas a confecionar o Arroz à Valenciana e revela que “grande parte das encomendas” do domingo são do típico prato espanhol. São cerca de 40 os quilos de arroz confecionados, servindo cerca de 500 pessoas. “Para encomendas servimos cerca de 400/450 pessoas. O resto fica para o restaurante e para quem vem cá de propósito para comer o arroz”, explica.

“É um dos pratos que mais se vende e só ao domingo”, afirma José Pires, 67 anos, proprietário do restaurante A Traineira, aberto desde 1987 e cujo Arroz à Valenciana também teve mão do chef Rivas, que ainda laborou no estabelecimento entre 87 e 88.

É a mulher de José, Ana Pires, 63, que confeciona o arroz d’A Traineira tendo aprendido com o chef espanhol. Ana revela que a manhã de domingo é dominada pelo Arroz à Valenciana, “só a tomar conta dos tachos”, sendo que os ingredientes que compõem o prato, tais como salsichas, chouriço, pimentos, ervilhas e camarão são preparados no dia anterior devido à grande quantidade, “ou então tínhamos de ter uma equipa muito grande”.

“[Os clientes] são capazes de pedir 40 ou 50 doses de arroz e quatro ou cinco de Bacalhau à Brás”, revela Ana Pires. “Não compensa fazer pequenas quantidades. Só é possível se fizer 10, 20, 40, 50 quilos de arroz. Se for dois ou três, a vender ao preço que está, fica-se a perder dinheiro”, acrescenta José Pires.

O responsável do restaurante considera que atualmente o Arroz à Valenciana não dá tanto lucro como antigamente, devido ao preço dos produtos e que não é viável aumentar constantemente o preço das doses. “Não se pode variar os produtos e têm que ser aqueles. Se não for assim, não dá certo”, sublinha.

Além do sabor, a qualidade dos produtos utilizados também tem influência na conservação e validade do prato. Aníbal Sanches garante que, “quando bem confecionado e acondicionado”, não se estraga facilmente, uma vez que é um arroz seco. “Se for bem acondicionado e que não apanhe grande ar, não se estraga com facilidade. É preciso tirar algum suco à carne. Quanto mais suco tiver a carne, mais tendência tem a azedar. Por isso é que é alourado”, explica o chefe.

Feito na Covilhã, consumido em…Lisboa

Se na Covilhã o Arroz à Valenciana foi uma aposta ganha, noutros locais do país nem tanto. “O Arroz à Valenciana é mesmo aqui. Já o tentei fazer noutros lados e não pega. Nunca pegou em lado nenhum”, revela Aníbal Sanches. Contudo, José Pires conta que já o abordaram para ir a Cernache de Bonjardim passar os saberes e sabores da iguaria. “Querem fazer naquela zona. Vêm lá de propósito para buscar arroz”, refere e diz, com orgulho, que vai “muito arroz” também para Lisboa, Porto, Tomar, entre outros.

“São pessoas que já conhecem o prato. Chegam aqui [ao restaurante], por exemplo, às 11:30, levam o arroz e seguem para Lisboa ou Porto para almoçaram com os familiares por volta das 14:00/14:30”, conta.

Noutros casos, os familiares vêm de fora e quem cá está vai buscar o arroz para “matar saudades” a quem não o come com tanta frequência. É o caso de João Sousa. “Vim buscar o arroz porque o meu filho que está em Lisboa, veio fazer uma visita e quis o Arroz à Valenciana. Como vem de vez em quando, é para matar as saudades”, afirma.

Também José Freire é consumidor regular do prato. “Não todas as semanas, mas às vezes encomendo. É um prato que aqui na cidade se consome muito ao domingo”, considera, afirmando com diversão que o arroz se devia chamar “Arroz à Covilhanense”.

 

A tradição durante a semana

Se a tradição se cumpre ao domingo na maior parte dos restaurantes, o restaurante Porta-Chaves, junto ao Jardim Público, é a exceção. “Faço questão de fazer sempre ou à quarta ou à quinta-feira para os meus clientes, porque eles gostam”, afirma Lucinda Freire, 55 anos, explicando também que o domingo é o seu dia de folga. No entanto, “se tiver uma família que queira ao domingo umas quatro ou cinco doses, não me importo”.

“É um prato que toda a gente adere e gosta. Não é preciso fazer outros pratos porque o Arroz à Valenciana chega”, assegura Lucinda Freire. No Porta-Chaves, no dia do Arroz à Valenciana, é feito um tacho que dá para 45/50 pessoas, o que equivale a seis quilos de arroz. A responsável também dá créditos à qualidade dos produtos utilizados. “Faz toda a diferença ser carne boa. Para fazer um bom Arroz à Valenciana, para ficar gostoso, faz toda a diferença uma boa vitela”, considera.

“É um prato que dá trabalho, mas faz-se com gosto. Eu gosto, mas gosto muito mais de o fazer”, conclui.

Já o chef Aníbal afirma: “Para mim, isto [Arroz à Valenciana] nunca acaba”.

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