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O hoje do antigamente

“Novos, idosos, professores, estudantes. É para todas as idades”. É assim na barbearia Raposo, aberta há 40 anos e procurada por miúdos e graúdos e por todos os estratos sociais.

Carlos Raposo tinha 23 anos quando abriu a barbearia, em 1983, e desde sempre foi a sua ocupação. “Tirei o curso de Administração e Comércio na Campos Melo, mas não acabei. Depois fui para a tropa e comecei a aprender numa barbearia aqui em cima, com o senhor Bizarro. Estabeleci-me aqui e estou cá há 40 anos”, explica.

Enquanto o barbeiro atende um cliente, outros dois esperam a sua vez. Um para ser atendido e outro para fazer tempo para ir até à coletividade ali perto. O barbeiro chama-lhe o “fórum das barbearias”, que acabaram devido à pandemia. “Antes da pandemia era assim [os clientes juntarem-se para conversar]. Depois iniciámos as marcações e perdeu-se o fórum das barbearias”, conta. Desde futebol a política, são vários os temas abordados.

“Dão muita atenção, dão opinião, conversa-se, canta-se umas cantigas e é assim. Convive-se mais”. Quem o diz é Maria Zulmira Meda, que veio buscar uma manta de ourelos à Loja do Povo ou, como é comummente conhecida, a “Loja do Zé André”, emblemática retrosaria da cidade da Covilhã.

Tecidos a metro é o que mais se vende na loja do casal João e Madalena Carvalheiro, de 72 e 67 anos. “Tudo o que seja retrosaria, tecidos, pijamas e lingerie é fundamentalmente o que se vende agora”, conta o comerciante.

Ainda hoje o aspeto antigo mantém-se. “As vezes digo ‘epá, gostava de modificar isto’ e as pessoas dizem-me ‘não mudes, isto assim está mais tradicional, está mais bonito’ e eu vou mantendo. É para lembrar o antigo”, afirma João Carvalheiro.

Desde 1990 que o casal ficou proprietário do estabelecimento. Contudo, a relação de João com a retrosaria remonta a 1963 quando, com apenas 12 anos, começou a trabalhar para José André. Passados alguns anos as obrigações militares levaram João até Moçambique e por lá ficou até 1973, quando foi convidado a voltar para a loja. “Foi o senhor Zé André que me escreveu a convidar, porque já se ganhava mais e vim novamente”, recorda.

Após 60 anos do primeiro contacto de João com a loja, o comerciante refere que “é um problema complicado” a situação atual do comércio. Se antes, segundo João, quem frequentava o comércio tradicional eram “as pessoas de mais idade porque não gostavam de ir aos hipermercados”, hoje em dia “ninguém vem a estas lojas”.

 

Albino Pereira, coproprietário de uma casa de carpintaria, situada nas imediações do Jardim Público, também relata a dificuldade de manter um negócio tradicional.

“A economia não está muito positiva. Não é aquilo que gostaríamos que fosse, mas vamos andando ao sabor da maré”, desabafa, enquanto interrompe o restauro de uma cadeira. O carpinteiro, de 65 anos, confessa que é “com dificuldade” que continuam o negócio para “assumir os compromissos”.

“Aqui em baixo fazemos restauros e por cima temos o setor de venda de mobília”, descreve Albino. Desde 1975 que o carpinteiro trabalha no estabelecimento, sendo que em 1985 foi-lhe proposta sociedade. “Éramos uns poucos de sócios até que foram saindo. Agora, sou eu mais um colega, que está lá em cima a atender os clientes.

Albino revela ter começado a estudar artes tendo, depois, desistido. Apesar disso, o carpinteiro afirma que isso lhe trouxe mais-valias. “O saber trabalhar a madeira está um pouco dentro da minha área. O ter jeito para o desenho já é meio caminho andado para fazer certos trabalhos”, afirma dizendo que gosta do serviço que faz.

O gosto pelo trabalho também está presente em José Mendes, alfaiate. “Aqui há tempos fiz uma farda para um pastor alentejano. É um espetáculo. É bonito aquilo de se fazer. A gente tem de ter gosto”, afirma o alfaiate de 83 anos.

Começou a trabalhar com 14 anos para “os industriais da Covilhã”. “Os meus primeiros clientes eram os senhores da Covilhã, das fábricas”, recorda. José diz que teve muitos clientes e que ainda hoje os tem, mas que o serviço passa, sobretudo, por fazer arranjos.

“Tive muitos clientes e ainda tenho. Hoje faço mais é arranjos. Bainhas, subir mangas, arranjar casacos”, enumera.

O alfaiate recorda que, antigamente, chegava a fazer cinco a seis fatos por semana. “Antes tinha muito trabalho. Hoje, de vez em quando. Por acaso em julho fiz dois fatos, mas é como calha”, diz.

José é dos poucos alfaiates ainda a laborar na cidade, mas não é isso que lhe dá orgulho. “Eu tenho orgulho não é nisso. Tenho orgulho é de chegar a esta idade e ainda trabalhar”, refere.

 

 

Também João Carvalheiro ressalva que, enquanto puder, vai continuar com a retrosaria. “Há muita gente que me diz ‘epá, já trabalhas há 60 anos, já te podias reformar’. Eu continuo muito válido, sinto-me bem. Dava em doidinho se fosse para casa. Ia fazer o quê? Agarrava-me à internet? Vamos mantendo enquanto a coisa der”, frisa.

“Antigamente, as pessoas de mais idade vinham, principalmente, no Natal, compravam mercadoria para dar aos netos, aos filhos, agora não”, conta João Carvalheiro. “E também há as vendas online que, parecendo que não, há muita malta que embarca nisso”, acrescenta Madalena. “As pessoas não ligam à qualidade, ligam ao preço”, conclui.

Madalena revela que o negócio tem estado “cada vez pior”, mas que por ali vão continuar. “Temos aqueles clientes muito antigos. Aquelas senhoras assim de mais idade que umas já são viúvas, outras não tem os maridos por perto, gostam de conversar e vêm aqui. É isso que também nos dá coragem para enfrentarmos o dia-a-dia”, desabafa.

Nos últimos anos tem-se assistido ao aparecimento de várias barbearias. Uma breve pesquisa no Google indicou que são dez as que se encontram na cidade da Covilhã. Para Carlos Raposo isso mostra é dada “uma importância aos barbeiros que talvez não fosse dada antes” e vê isso como um ponto positivo. “Felizmente, agora deu-se o boom das barbearias”, opina.

O barbeiro não sente que isso tenha afetado o seu negócio, tendo-se adaptando ao sinal dos tempos. “Fui aprendendo, fui vendo e acho que tenho muitos clientes. Às vezes não tenho tempo e já não dou aviamento”, comenta, em tom alegre.

“Fiz poucas modificações”, diz Carlos sobre o aspeto da barbearia. Segundo o barbeiro, é para “manter a essência”. “Informática, pagamento por Mbway, multibanco, isso também são atualizações”, intervém o cliente enquanto faz o pagamento do seu corte de cabelo.

A mudança da Barbearia Raposo para outro espaço pode ser uma possibilidade no futuro, adianta o barbeiro. “Alguém comprou este espaço todo onde eu estou, vai fazer obras e é lógico que vou ter de arranjar outro espaço”, revela.

“A pessoa veio, apresentou-se e disse que, para já, não, mas qualquer dia é. Com muita mágoa minha. Tenho aqui grandes vivências”, diz Carlos Raposo. “Enquanto puder e se puder continuo, porque eu gosto muito de estar aqui”, remata.

 

 

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