Ao som da água da Ribeira da Carpinteira, que corre lá fora, e que outrora alimentava a tinturaria e o acabamento da Fábrica Estrela, entre urdideiras, teares mecânicos, bobinadeiras, a catalã Sonia Benítez, de 42 anos, faz uma viagem ao passado para criar uma peça que preserve a memória no futuro e desenvolva novas técnicas no presente, no New Hand Lab, Covilhã.
A tecelã, rodeada de múltiplos materiais recolhidos na cidade, na Serra da Estrela e na antiga fábrica, agora um laboratório de artes, está dobrada sobre um tecido com mais de quatro metros de comprimento e 1,60 metros de largura feito no tear mecânico ao lado e vai, com toques ao de leve, agulha firme na mão e o foco na tarefa, introduzindo novas abordagens e elementos à peça a que se dedicou durante o mês.
Sonia Benítez é uma das autoras selecionadas para participar nas Teias Criativas, residências artísticas para designers que vão decorrer este e no próximo ano no New Hand Lab relacionadas com o património industrial e que pretendem fazer a ponte entre o tradicional e o contemporâneo.
Na antiga Fábrica Estrela, há 11 anos convertida num espaço de acolhimento de artistas residentes, local de visitas turísticas, casa de eventos, como espetáculos de música, ballet, teatro ou cinema, vai recebendo convidados que queiram criar e agora promove, com o apoio da Direção Geral das Artes, as Teias Criativas, conjunto de seis residências, explicou o responsável, Francisco Afonso.
Segundo o proprietário do New Hand Lab, classificado como monumento de interesse público, à chamada concorreram 75 artistas internacionais e foram escolhidos seis nas áreas do tufting, tecelagem, manualidades com lã, vestuário e multimédia, que à vez, durante um mês, vão criar uma obra, fazer uma oficina com a comunidade e participar numa conversa sobre o trabalho desenvolvido.
Aqui, entre maquinaria agora quase em silêncio, novelos de lã em prateleiras, chão em cimento da antiga fábrica com cardação, fiação, tecelagem, acabamentos e tinturaria, os canos à mostra das nascentes da água que alimentavam o acabamento, fios elétricos industriais, bobines e paredes de azulejos brancos com as marcas do tempo, o passado não repousa. Foi resgatado para uma nova vida.
Os criadores foram desafiados a utilizarem os materiais que encontrarem pela antiga fábrica e a incorporarem no seu trabalho esses pedaços de uma Covilhã que os anos transformaram. Símbolos de uma identidade.
Iluminada pelas dezenas de janelas gigantes aos quadrados, onde em tempos circularam 410 trabalhadores, Sonia Benítez elogia a forma como, numa cidade onde a surpreenderam as muitas fábricas abandonadas e em ruínas, se deu uma utilização artística a um espaço que deixou de ser de produção de muitos metros de tecido.
Habituada a trabalhar num tear manual, a assentar a sua criação numa ideia de sustentabilidade e a utilizar materiais da natureza, como ráfia, esparto, madeira ou objetos da montanha, a ideia de reutilização agradou-lhe.
“Fiquei muito surpreendida por dentro da fábrica continuar a existir muito material e esse reaproveitamento está dentro da minha linha de trabalho”, disse ao NC a artista espanhola.
Segundo a autora, a peça que criou, de dimensões a que não está habituada, é uma analogia entre o passado da Serra da Estrela, a transumância, a indústria têxtil da Covilhã e como pode existir no futuro.
A peça utiliza os tons naturais da terra e das ovelhas, os verdes da serra e uma linha vermelha, que destaca o movimento sazonal dos rebanhos, mas que “também pode representar o caminho de qualquer existência”. Na mesa ao lado estão os objetos do estudo. Plantas recolhidas, polaroids da cidade e da serra, a listagem das técnicas utilizadas, das texturas, dos materiais e o simbolismo de cada parcela da peça.
Francisco Afonso, que cresceu dentro destas paredes e passou por todas as etapas dentro da fábrica, até parar a laboração, em 2002, foi o mentor da residência de tecelagem e acentua que a ideia das Teias Criativas foi desafiar os criadores a apresentarem algo novo e único, mas que eles também estimulassem com o seu processo criativo.
“É um desafio muito grande. Estamos quase a desafiar os limites da máquina, a testar até onde ela pode ir com a criatividade e, assim, podermos também dizer que estes teares mecânicos, embora sejam antigos, também estão aptos a desenvolver outras peças”, realçou o responsável pelo New Hand Lab, a propósito da peça de tecelagem.
Modificar conceitos, contornar os padrões habituais, encontrar outras técnicas é o objetivo do projeto, sugerindo aos criadores que utilizem os materiais que encontrem pela fábrica, espaços de onde emanava o som que marcava o ritmo da cidade outrora.
A Francisco Afonso perturba-o o silêncio e o vazio de tanto espaço devoluto, satisfeito por na unidade fabril da família, onde cresceu, haver “movimento todos os dias e ela está viva”, agora com outras funções.
“Há muitos monstros abandonados na cidade. Um propósito nosso é o grito que queremos dar, de dizer que nós não somos um monstro abandonado. Este monstro está a ter vida e estamos a deixar a nossa herança, que assenta no futuro”, sublinhou o responsável.
Francisco Afonso realça que as Teias Criativas, com um orçamento de 65 mil euros, financiado pela Direção Geral das Artes, têm todas o tema dos lanifícios, para “lhe dar uma visão diferente”.
“A fábrica parou a laboração, mas continua a ser produtiva. Estamos a dar-lhe uma utilidade e é essa utilidade que queremos transmitir, queremos que se propague e seja um fio condutor para que outras possam aparecer”, frisa o proprietário e dinamizador, que destaca o princípio de o New Hand Lab estar aberto à comunidade e não fechado sobre si próprio.
A decorrer está a residência com a designer Cybelle Mendes e estão planeadas outras de cerâmica com crochet/tricot, com Silos, e uma de reinterpretação de uma peça têxtil, com o intuito de criar uma obra digital, através de media artes.
Os trabalhos vão estar expostos na Trienal Internacional de Design da Covilhã, que começa em 21 de março, e vai depois circular por uma rede de parceiros, que inclui instituições no estrangeiro, até voltarem à Covilhã, para integrarem a coleção do New Hand Lab.