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Quando o palco volta a ser a vida normal de um artista

João Alves

Dois anos. Foi este, sensivelmente, o tempo em que algumas companhias que participavam em feiras medievais, de Norte a Sul do País, estiveram sem espectáculos. Do teatro às artes circenses, da música à dança. Mas no passado fim-de-semana, pelo menos quatro delas tiveram actividade, na versão “breve” da Feira Medieval de Belmonte, promovida pela autarquia. E houve quem, em palco, nem sequer conseguisse conter as lágrimas, como por exemplo Raquel Gama, dos Cornalusa, um grupo de Coimbra que na noite de sábado, 14, deu música medieval a 150 pessoas (lotação limitada e por marcação), no anfiteatro do castelo da vila.

“Agradou-nos tanto esta participação em Belmonte. Tivemos interacção directa com o público e foi fenomenal. O que íamos fazendo, pediam-nos sempre para não juntar muita gente, estar longe das pessoas, mudar de sítios. Aqui, criou-se uma relação mais íntima, em cerca de uma hora de espectáculo” conta ao NC esta música que está no grupo conimbricense desde a sua criação, há cerca de 12 anos, e que nunca tinha passado por um período de tempo com tão pouca actividade, provocado pela pandemia.

“Faço parte dos Cornalusa desde o início. Tivemos sempre muito actividade, menos nestes dois anos. Tivemos um interregno na quarentena, o ano passado, em que ainda fizemos um evento, mas coisa pouca. Para quem tinha cerca de 100 datas por ano, passar para apenas uma ou duas é um rombo muito grande” explica, lamentando o pouco apoio dado pelo Estado a quem fazia da arte o seu ganha-pão. “O que queremos é ver de novo esta economia a mexer e a arte a ser valorizada. Já que foi um parente pobre da pandemia, pois esteve suspensa este tempo todo. O Estado esqueceu-se um pouco que nós, mas quem corre por gosto não cansa. Para o ano, esperamos estar em muitas feiras medievais, e em especial, nesta, onde o público é maravilhoso, o que não acontece em qualquer lado” frisa.

“A malta precisa de meter leite no frigorífico”

Em palco, Emanuel, outro dos elementos do grupo, dizia repetidas vezes ao público: “Vocês nem estão bem a ver a nossa alegria por estar aqui”, lembrando que “desde 2019 que não tínhamos tanta gente”. Aliás, “já não vínhamos a Belmonte desde o fim do mundo” ironizava, numa alusão à covid-19, recordando que durante este tempo “estivemos em casa, sem fazer nada, e a malta precisa de meter leite no frigorífico”. O músico também deixa críticas ao Governo. “Falou-se muito de bens essenciais. Isso deixou-me a pensar. Até porque o homem, desde as cavernas, precisa de algo essencial, que é exprimir-se. As suas emoções. E isso chama-se cultura” conta.

Para Raquel e os colegas, a forma de sobreviver foi fazer dos hobbies que cada um tinha, a actividade principal. “Começamos agora a ver uma luz ao fundo do túnel. Este mês já temos algumas coisas mais, e esperamos que melhore a partir de agora. Nós vivíamos disto, e tínhamos hobbies. O que aconteceu é que os hobbies passaram a ser o trabalho, e a música ficou em suspenso até agora. Tínhamos outras valências a que nos pudemos agarrar, mas infelizmente temos muitos amigos que não tiveram essa hipótese” garante Raquel, que apostou na gestão de redes sociais, na pintura e artesanato para fazer face a estes tempos mais difíceis. “Os meus colegas fizeram vídeo, edição de áudio, outras valências que já tínhamos. Reinventamo-nos. Fizemos disso o nosso trabalho, mas esperamos poder regressar a 100 por cento à música” deseja.

De servente de obras a empregada de mesa

Já Izzi e Josefina, dois checos radicados há já cinco anos em Portugal, e em concreto, em Maçaínhas, concelho de Belmonte, tiveram muitas dificuldades em subsistir. E tiveram que se agarrar a tudo o que podiam, para colocar comida na mesa. Os dois elementos (casal) que constituem o grupo Kinessis Nomad Teatral, de arte circense ligada ao trapézio e ao fogo, experimentaram outros ofícios, mas acreditam que voltarão, a tempo inteiro, aos espectáculos de rua.

“Já tivemos que fazer outras coisas. Experiências boas, e outras, nem tanto, terríveis até. Tive que trabalhar como servente na construção civil, e na linha do comboio, mas foi necessário para sobreviver” explica Izzi, que tem apostado agora em novas criações, em fazer novos fatos ou utensílios para os espectáculos da dupla. Já a esposa, Josefina, recorda que teve que trabalhar em restaurantes e ainda hoje está como empregada de mesa, num alojamento rural. “Depois de tantos anos a trabalhar por conta própria, não é fácil adaptarmo-nos a outros trabalhos, mas conseguimos e temos muita fé que tudo volte ao normal” afirma.

Izzi garante que a participação na “pequena” feira medieval de Belmonte foi algo importante, sobretudo em termos mentais. “Para nós foi muito importante haver esta iniciativa. Esta feira medieval, para nós, era das mais importantes, pois já moramos aqui há cinco anos. Fizemos a primeira, em Belmonte, em 2014, e a partir daí sempre participámos, com muito gosto. Foi um prazer estar aqui agora, até porque nós parámos no início de 2020. O último espectáculo que fizemos foi em Dezembro de 2019, e desde aí fizemos algumas pequenas coisas. De resto, não houve trabalho este tempo todo” lamenta. Josefina, com alegria no olhar, acredita que os tempos mais complicados já lá vão.  “Não queremos mais parar. Para o ano, espero que estejamos já aqui numa feira maior. Não tivemos qualquer tipo de apoio, tivemos que sobreviver por nós, como sempre, mas acreditamos que agora já nada nos vai parar. Nem o vento” dizia na noite de domingo, em que algum vento dificultou a performance de fogo protagonizada no anfiteatro do castelo. “Estávamos no limite de condições para o fazer, mas tínhamos que fazer” frisa Izzi.

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