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Quando Portugal passou pelo mesmo que a Ucrânia

Carlos Madaleno

Assistimos hoje, em direto, aos horrores infligidos à Ucrânia pela Rússia. Uma nação soberana é varrida por uma onda de violência que extravasa os combates bélicos. Todos os dias nos chegam testemunhos de mortes civis, de mulheres e crianças, de habitações destruídas, incendiadas e saqueadas. Chegam-nos relatos de violações de raparigas, mulheres idosas e até de crianças de tenra idade. Olhamos as imagens de tortura e execução de velhos e indefesos e, aconchegados, no conforto do nosso lar, escudados na ideia de que somos um país de brandos costumes, até nos esquecemos que já passámos pelo mesmo.

Foi há 112 anos, em 1810. Naquela data, tal como hoje, a ambição desmesurada, de um louco que quis ser imperador, traduziu-se numa tirania sem disfarce que espalhou o terror e a morte pela Europa. Desde 1801, que Portugal vinha a sentir os efeitos dessa ambição, primeiro através da invasão que ficou conhecida por Guerra das Laranjas, depois através das invasões de 1807 e 1809. Foi, no entanto, em 1810, que Portugal viveu a pior das suas guerras, sendo as tropas inimigas comandadas pelo marechal André Massena, o grande delfim de Napoleão. As forças francesas entraram, em Portugal, em julho de 1810. Depois de tomada Almeida, Massena seguiu em direção a Lisboa. Escolheu como itinerário, a margem direita do Mondego, em direção a Coimbra, dali, pela Estrada Real, rumaria à Capital. A região da Cova da Beira parecia poder respirar de alívio, à semelhança das invasões anteriores, onde apenas alguns conflitos como o massacre de Alpedrinha, em que morreram 31 pessoas, no dia 5 de julho, de 1808, causaram maior sobressalto.

No caminho para Coimbra, os franceses encontraram povoações desertas e campos ardidos. A retirada das populações, à aproximação dos franceses, por indicação do comando britânico, levando consigo tudo o que pudessem, e escondendo, ou incendiando o que não pudessem transportar e deixando as águas envenenadas, despertava nos franceses maior agressividade e crueldade ao verem gorados os seus intentos. Cadáveres enforcados, mulheres estragadas, como então se dizia, um povo deambulante e cheio de fome ficava pelo caminho. Pasto da artilharia e do fogo, algumas aldeias como Algido e Freirigo desapareceram. Vários povoados da serra do Buçaco foram reduzidos a cinzas. Ali perto, na freguesia de Espinho, oito povos foram queimados. Na freguesia de Pala arderam trinta e quatro casas. Santa Comba Dão teve igual destino, uma aldeia e metade de outra ficaram destruídas, acontecendo o mesmo na freguesia do Sobral a três povoações. Depois da Batalha do Buçaco, Coimbra foi saqueada, nos 3 primeiros dias de outubro de 1810. Às pilhagens dos franceses seguiram-se as do povo.

 Massena não conseguiu chegar à Capital, ficando retido nas linhas de Torres. Enviou como emissário a Napoleão, o General Foy para pedir reforços. É a partir daqui que as coisas se complicam para a nossa região. Foy incumbe o general Gardanne, com o seu exército estacionado em Espanha, de levar apoio a Santarém. Gardanne entra em Portugal pelo Sabugal e dirige-se ao Fundão. Entretanto, o General Foy regressa a 31 de janeiro de 1811. Entra igualmente pelo Sabugal, segue por Sortelha, Belmonte e continua na Estrada Real, em direção a Peraboa e Ferro. Pernoita em Alcaria e dirige-se, pelo Freixial, à Enxabarda. A Covilhã tinha escapado de novo. Mas, em 1 fevereiro de 1811, no sopé do cabeço Zibreiro, o exército francês é atacado pelas ordenanças de Alpedrinha, perdendo muitos homens.

 A coluna divide-se, muitos soldados ficarão por sua conta.  Parte deles pilha toda a região e fica aquartelada junto ao povo do Teixoso, até ao final da retirada de Massena. Aí, chegam a ocupar casas particulares, como a de Maria do Carmo Tomé. Deles escreve o padre Ferreira Leitão Freire, pároco do Teixoso de então, “arruinou o dito exército francês todos os efeitos dos moradores deste lugar, profanou e destruiu todos os seus santuários…. e retirando-se por estas razões os moradores para as montanhas aí faleceram, assassinados pelos franceses e outros de fome, frio e aflições, cansaços e também de moléstias”. Depois nomeia as 149 vítimas sepultadas, afirmando não ter notícia de muitos outros que terão perdido a vida “por causa dos tumultos da guerra mais bárbara que tem havido entre as nações civilizadas”.

Na Covilhã, mais defendida, os franceses entraram, no dia 18 de fevereiro e, aí, se mantiveram, durante uma semana. Saquearam casas, profanaram igrejas, no convento de São Francisco, destruíram e incendiaram imagens sagradas. Roubaram e atearam fogo a algumas fábricas como a de Simão Pereira da Silva. Também aqui, parte dos moradores fugira para a serra e muitos lá morreram e foram sepultados, como Rita Maria Fortuna e António Diogo, fregueses de Santa Marinha. Paula Antunes, criada do prior do Salvador, foi achada morta, quase um mês depois, no sitio do Sineiro e ali é sepultada, junto da casa de José Almeida que requereu a sepultura por “o cadáver se achar já cheio de corrupção”. Manuel de Oliveira, de 72 anos, é encontrado esquartejado, em sua casa, no dia 26 de fevereiro. No dia seguinte encontram Bárbara de Mesquita Bandeira, com cerca de 90 anos, que fugindo, se perdera e morrera à fome e ao frio. O prior de Santa Maria enumera também várias vitimas, Rita Cardona Barreiro e Ana Martins que morreram no desamparo da serra, Francisco das Neves Salgadinho e seu cunhado Bernardo assassinados pelos franceses, Rita Calcanhar, encontrada morta. Refere ainda que, no dia 19, os franceses impediram a sepultura do Padre Francisco da Paula Torres, na igreja de Santa Maria, razão pela qual acabou sepultado na ermida de Nossa Senhora do Rosário.

E como um mal nunca vem só, grassava na região, durante o mesmo período, uma grave epidemia, a qual se constata através dos assentos de óbito, onde é referida como febre contagiosa, febre maligna ou moléstia maligna.  As Freguesias mais afetadas, na Covilhã, são as de São Martinho e do Tortosendo. Nesta última são enumeradas igualmente algumas vítimas dos franceses, caso de José Casegas e Luís José Mateus, de 17 anos. Também aqui os franceses se apoderaram dos bens da confraria das Almas, dos galões de ouro do estandarte e das cobertas dos andores.

Finalmente a retirada de Massena teve início no dia 5 de março e terminou dois dias depois da Batalha do Sabugal, em 3 de abril, de 1811. Foram tempos terríveis, onde a crueldade e a sede de vingança tomaram conta de tudo, tal como nos momentos que hoje se vivem na Ucrânia. Tenhamos a coragem de os evocar, na certeza de não repetir a desumanidade que acompanha sempre as guerras entre as nações e o sofrimento atroz, imposto às populações atingidas.

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