“O planeta está a chorar”, alerta, repetidamente, Catarina Gomes, de 48 anos, juntamente com o marido, Rui Gomes, proprietária de uma empresa covilhanense de recolha de resíduos têxteis e produção de fio reciclado, com unidades no Tortosendo e no Canhoso.
Enquanto mostra máquinas criadas pelo engenho do marido, aponta para os fardos de desperdício que aproveitam ou verifica a separação dos materiais, a empresária preconiza ser necessário regressarmos aos hábitos de avós e bisavós e sermos mais conscientes no ato de comprar.
“A minha avó tinha duas camisas, a minha mãe tinha cinco e eu tenho 50. A minha filha já só quer ter cinco”, refere, ao NC. É a pensar nesse tipo de mentalidade, embora ressalve que ainda se trata de um nicho, que criou uma pequena coleção de peças de roupa, assente no eco design, para ser comercializada a partir do final de setembro ou início de outubro, com a premissa de o cliente a devolver quando já não a utilizar e ter desconto na aquisição da próxima camisola ou casaco.
A intenção é que a coleção, produzida com fio feito a partir de desperdícios não utilizados na indústria têxtil e dos lanifícios, que de outra forma iriam para aterro ou incineração, chame a atenção para a necessidade de termos comportamentos mais sustentáveis e as roupas ganhem uma segunda vida.
Peças vendidas com passaporte
Os proprietários da empresa explicam que “a microcápsula” de roupa está em produção, vai ter “no máximo” 700 peças, para contrariar a ideia de massificação, cada unidade será numerada, e cada unidade será acompanhada da história “do que já foi em outra vida”, uma espécie de passaporte, e de um vale de 20%, a descontar numa futura compra, se a roupa utilizada for entregue para ser novamente reciclada.
Além da ideia de “desperdício mínimo”, a J. Gomes pretende também, depois de devolvida, “estudar como a peça se comportou durante a utilização”, segundo Catarina Gomes.
“É uma microcápsula, para não haver desperdício. Se tiver o privilégio de voltar a receber a peça, é dado um desconto de 20% na aquisição da próxima, um incentivo para nos devolverem a velha, para a estudarmos e lhe darmos nova vida”, explica a empresária.
“Uma nova vida”
Com duas fábricas, Catarina Gomes faz uma analogia entre o novo projeto e o que aconteceu em janeiro de 2022 à unidade localizada no Canhoso, que “ardeu na totalidade” e também “renasceu das cinzas, ganhou uma nova vida”.
Embora ressalve que esse não é o negócio da empresa, Catarina Gomes sublinha que, tendo o fio à disposição, esta é uma forma de “fazer um conceito de moda diferente”, “apostar no eco design e no desperdício mínimo” e dar o passo para que “outras empresas sintam confiança em arriscar neste tipo de produtos”.
“Queremos consciencializar as pessoas que é possível andar na moda, ter um produto muito giro, com a garantia de que vai voltar a ser reciclado, numa lógica de comprar uma camisola, saber que é feita com fio reciclado, comprar porque gosta, mas também por saber o que lhe vamos fazer quando já não a utilizar”, frisa Catarina Gomes, que nas suas duas unidades recicla anualmente uma média de dois milhões de toneladas de desperdício têxtil e conta este ano chegar às três milhões de toneladas.
“O reciclado faz moda bonita”
Segundo a empresária, o conceito é a antítese de fazer coleções numerosas, porque “a ideia não é o lucro, mas consciencializar que o reciclado faz moda bonita”.
A microcápsula de roupa tem previstas 50 peças por modelo, com sete opções para mulher e duas camisolas e um casaco para homem, roupa composta maioritariamente por lã, mas também poliéster, acrílico e outras fibras.
“A nossa preocupação é que o cliente goste, se sinta confortável, mas que no fim tenha a consciência de nos entregar a peça. Isso é que é valioso”, reforça Catarina Gomes, enquanto alisa com as mãos uma manta que há dois anos a empresa começou a comercializar, juntamente com echarpes, cachecóis e meias, feitas com o mesmo fio reciclado, e que tiveram “uma boa aceitação”.
Próxima coleção com fio vegan
A responsável da J. Gomes que, sublinha, tem também o primeiro fio vegan reciclado certificado em Portugal, adianta que a equipa está já a pensar na próxima coleção, para a primavera/verão, assente num conceito vegan, aproveitando os recursos existentes.
Catarina Gomes refere a aposta na economia circular e as sinergias com as empresas da região, onde são recolhidos os desperdícios e para onde vai o fio para fazer estas peças concebidas na J. Gomes. No caso, uma fábrica em Loriga, reduzindo a “pegada carbónica”, pela proximidade entre a rede montada.
Eco design
A empresária defende que os designers vão ter de repensar a moda e os materiais utilizados, reduzindo ou eliminando, sempre que possível, fechos, botões e outros adereços que dificultam a reciclagem e “pensando na otimização do processo de reciclagem”
“Não é o reciclado que tem de se adaptar a nós, nós é que temos de nos adaptar ao reciclado”, alvitra, à medida que circula pelas várias seções da fábrica no Tortosendo, onde tudo é separado e, durante a semana, “só saem dois sacos para o lixo: o do refeitório e o da casa de banho”.
As peças, vendidas na loja ‘online’ e em locais a definir, vão ter um preço entre os 65 e os 70 euros, as camisolas, e os 85 e os 90, os casacos.
As cores, em tons pastel e cinzento, resultam da mistura dos materiais, sem tingimento.