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“Serão as ervas daninhas, ou estes procedimentos danosos?”

André Leitão

Médico

Nem sempre um passeio de bicicleta, numa manhã de Verão, nos traz a tranquilidade que procuramos. Ao subir a encosta do Casal da Serra, Tortosendo, fui surpreendido pela desoladora imagem de uma equipa de funcionários da Junta de Freguesia (JF), com aparatosos fatos e máscaras de protecção sinalizando a perigosidade da operação em curso, a aplicar abundantemente herbicida na faixa lateral da estrada, onde umas baixas ervas, flores e fetos verdejavam.

Questionados sobre a necessidade de tal acto numa faixa de terra junto a um muro, onde nem passam peões, responderam-me que nem concordariam muito, mas se limitavam a cumprir ordens. A obediência a hierarquias, quando nos pedem acções questionáveis, é um eficaz apaziguador de consciência. E essas superiores ordens viriam da JF, com a chancela supervisionadora das Águas da Covilhã (ADC).

O herbicida aplicado, o glifosato (na preparação Roundup), é uma substância ainda autorizada, sobre a qual há muito se acumulam dúvidas sobre potenciais efeitos na saúde humana. A Organização Mundial de Saúde já o considerou provavelmente carcinogénico. A Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar considerou que tal efeito não está provado no glifosato isolado, embora seja possível pelas substâncias associadas nas formulações comerciais usadas. Em estudos laboratoriais com animais, já foram demonstrados efeitos de desregulação endócrina (hormonal), nomeadamente no sistema reprodutivo, e efeitos no sistema nervoso (na neurogénese e neurotransmissão), questionando-se actualmente o seu possível papel no surgimento de doenças neurodegenerativas. A prova inequívoca destes efeitos no homem ainda não é total, pois há uma grande dificuldade em estabelecer uma relação causa-efeito entre a exposição crónica a tóxicos em baixa dose e o surgimento de doenças que só muito mais tarde se manifestam.

O que está já documentado é a presença de glifosato no nosso organismo (detectável no sangue, urina, esperma) numa grande percentagem da população, sendo particularmente assustador alguns estudos terem demonstrado níveis nos portugueses superiores a outros europeus. São indícios do contacto generalizado com esta substância, usada actualmente de forma massiva na agricultura para eliminar plantas competidoras, e que chega ao nosso organismo pelo ar, água e alimentos.

Neste cenário de contacto e acumulação nos nossos corpos de substâncias com um potencial nocivo que ainda não compreendemos totalmente, é difícil de entender que estes herbicidas continuem a ser usados abusivamente por organismos públicos para remoção das chamadas “ervas daninhas”, a vegetação considerada indesejável.

Antes de mais, devemos questionar se há real prejuízo na vegetação em causa. Compreende-se que se removam plantas que dificultem a mobilidade em passeios ou que interfiram com infraestruturas. Mas o exemplo ilustrado mostra que mesmo em locais onde não passam peões são eliminadas. Qual o dano que causavam? Aliás, a tendência actual defendida para a preservação da biodiversidade é não eliminar vegetação espontânea onde esta não seja prejudicial, pois é essencial para os insectos polinizadores dos quais depende toda a nossa cadeia alimentar. A propósito, acrescente-se que já foram demonstrados efeitos nefastos do glifosato sobre as abelhas.

Em segundo lugar, devem ser privilegiados, sempre que possível, meios de remoção de plantas por arranque/corte (manual ou mecânico), havendo ainda alternativas como a monda térmica. No caso a que assisti, da marcha lenta daquele “carro fúnebre” para as plantas, é fácil imaginar o cenário alternativo: os mesmos 3 funcionários cortando ervas com os instrumentos certos, fariam o trabalho tão ou mais rápido, evitando espalhar no solo químicos indesejáveis numa encosta onde até há pontos de captação de água para a rede pública – curiosamente, feita pela ADC, a mesma empresa que fornece e também aplica o herbicida em causa.

Estes procedimentos não são exclusivos desta vila, têm sido prática também na Covilhã. O nosso concelho, lamentavelmente, não integra a lista dos 22 municípios nacionais que já aboliram a aplicação indiscriminada de herbicidas em espaços públicos e optaram pelo uso exclusivo de outros meios, demonstrando que são viáveis alternativas em que não sujeitamos a população e meio ambiente a riscos desnecessários. Mesmo aqui ao lado, Manteigas já o fez, município que há largos anos vem demonstrando melhor saber respeitar e cuidar a Natureza, potenciando o privilégio de estar localizado nas encostas da nossa montanha maior.

Já é tempo de aprendermos com os bons exemplos. Antes que, para a nossa saúde, seja tarde demais.

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