Ora são pacientes que vão receber um diagnóstico mau ou inesperado, ora são médicos que, com a informação disponível, lidam com as situações com que se deparam. Orientados por dois médicos, dois psicólogos, e um ator, estão a representar papéis, com base nos guiões entregues minutos antes para comporem as personagens. As certezas são por vezes território armadilhado e é importante ir além do mero olhar clínico, para minimizar distâncias invisíveis a realidades desconhecidas.
Dez alunos de Medicina da Universidade da Beira Interior (UBI) integram um grupo piloto de formação de pacientes simulados, que se pretendem pôr no lugar do doente nas suas várias dimensões e, assim, assimilar melhor e mais informação, para terem a capacidade de otimizar a abordagem e a resposta a cada caso em concreto.
O grupo, que no próximo ano será maior e alargado a outros cursos, é separado em dois. Recebem informação parcial, um na perspetiva do médico, outro do doente. Depois encenam uma consulta. Testam as dificuldades de comunicação, eventuais preconceitos, vigiam julgamentos, empolam as emoções, tentam obter reações nem sempre conseguidas, dramatizam comportamentos, mostram frustração, raiva, tristeza, fazem questões aparentemente sem nexo e há que saber ler nas entrelinhas. Observar a linguagem não verbal. No final, faz-se uma reflexão, há autocrítica, analisa-se o que podia ter sido dito ou feito para uma melhor compreensão mútua. E para, numa situação real, limar essas arestas e estar a tento a certos pormenores.
O currículo do curso de Medicina já dá enfoque à comunicação da informação e à formação humanizada. Já contém todos estes conteúdos. Os alunos são avaliados com casos práticos e com modelos estáticos que existem na universidade. São-lhes dados casos reais para observar e orientarem a terapêutica, mas não com pessoas, treinadas para o efeito, e “sujeitas à imprevisibilidade da reação”, salienta Beatriz Han, 23 anos, finalista de Medicina, que se inscreveu no curso de pacientes simulados – sete sessões, 30 horas – para enriquecer a sua formação, tornar-se uma melhor médica e poder contribuir mais tarde para o treino de colegas nesta área, com os conhecimentos adquiridos.
Para Beatriz Han, ser avaliado com uma pessoa real à frente, a fazer o papel de doente, obriga a uma maior elasticidade no pensamento e a ajustes constantes no desempenho em função das reações obtidas, mais emocionais e inesperadas.
“Tens de explorar o impacto emocional desse diagnóstico, em vez de apenas a parte clínica”. “Faltou emoção que validasse a compreensão, a empatia. O que mudavas, se fizesses diferente?”, questiona Marta Duarte, psicóloga. “Tens de dar espaço para a resposta emocional”. “Pensaste porque é que ela teve receio de ir à medica de família? Qual é a emoção associada?” acrescenta o também psicólogo Paulo Vitória, a propósito de uma situação de violência sexual. Sérgio Novo, ator, elogia a representação, as subtilezas expressivas. “Podem ir buscar informação onde ela não existe”, frisa.
O presidente da Faculdade de Ciências da Saúde (FCS), Miguel Castelo Branco, acentua a importância de obter dos pacientes informação sobre o problema de saúde de uma forma adequada e adaptada às caraterísticas do interlocutor. Além de se treinar a capacidade de o médico se meter no papel do doente, percebendo como tem de agir, e também criar uma relação de confiança, a formação na UBI tem em conta contextos de “comunicação de grande relevo”, como transmitir uma má notícia, algo que correu mal ou uma morte.
“Essa é uma área em que apostamos muito. Não tínhamos era este instrumento, que era a possibilidade de depois verificar se aquilo que está a ser ensinado é utilizado adequadamente”, enfatiza Miguel Castelo Branco.
Segundo o presidente da FCS, agora é necessário validar o processo e eventualmente corrigir alguma coisa, para que os alunos se possam tornar “melhores profissionais e melhores comunicadores”.
Miguel Castelo Branco adianta que quer aumentar o número de alunos com a formação de pacientes simulados, para que eles colaborem nessa condição nas provas de avaliação. Um modelo que o responsável quer implementar já no próximo ano letivo e “depois replicar isto, no sentido de criar mais condições para continuar a utilizar o processo”.
Finalista, Beatriz Han tem essa vertente em mente, contribuir, como médica, para a formação dos colegas através desta ferramenta, “porque uma pessoa não é uma coisa só, é um conjunto complexo”. Apesar de a comunicação ser trabalhada no currículo, este curso permite aprofundar conceitos teóricos e treinar certos aspetos, considerando que “certas palavras podem traduzir-se em atitudes ou atitudes em palavras”. Um dos maiores desafios é tentar “pensar como o doente e não ter o raciocínio estabelecido para o médico”, tal como perceber as variações das emoções e que leituras se podem fazer, para uma avaliação mais holística.
“Aqui nós crescemos, ao analisar o que está bem, mal, o que evitar”, afirma Mariana Patrício, 26 anos, aluna do terceiro ano de Medicina, mas com uma licenciatura em Ciências Biomédicas, durante a qual foi avaliada em outra instituição num contexto de doentes simulados e ficou com curiosidade.
Com essa possibilidade na UBI, inscreveu-se, com a certeza de que se estava a expor, por nunca ter tido qualquer contacto com a representação, mas com a expetativa, concretizada, de ganhar novas ferramentas de trabalho, para saber lidar da forma mais apropriada a oscilações ao padrão.
“Pormo-nos dos dois lados deu para perceber quão difícil é”, conta Mariana Patrício. Uma das vantagens passa por treinar “como nós manifestamos as nossas emoções e como é que os outros as percecionam”. “Nós só sabemos fazer as coisas se treinarmos e se tivermos consciência daquilo que existe e daquilo que fazemos”, refere.
Marta Duarte, uma das envolvidas na formação, afirma que a função da equipa é essencialmente dinamizar as ações, “lançar os desafios e ajudar no raciocínio e na interpretação”.
“O currículo normal do curso trabalha muitas questões da humanização, dos cuidados da ética, do profissionalismo. Este curso dá um contributo maior, porque obriga uma prática mais regular”, considera a psicóloga, que destaca o estímulo dado para a autocrítica e “a grande margem para a reflexão, a crítica, a análise”, uma mais-valia para melhorar procedimentos. “Quando nós somos capazes de nos observar e fazer uma autocrítica ao nosso desempenho a aprendizagem é consideravelmente mais positiva”, salienta Marta Duarte.
Ao ator Sérgio Novo, da companhia covilhanense ASTA, cabe trabalhar a parte performativa e dar aos alunos “ferramentas teatrais, para se sentirem mais à vontade, mais confiantes”, e ajudou a desenhar os argumentos e a pô-los em prática.
“Tivemos vários exercícios que visavam precisamente explorarmos os sentimentos. Os nossos, os nossos para com os outros e os nossos como um todo”, conta, acrescentando que foi também treinada a capacidade de improviso, de concentração, de relaxamento, de falar em público.
Paulo Vitória sublinha a importância de estender à UBI um projeto, no âmbito da comunicação clínica, que já existe em outras instituições. “Estamos a passar para um patamar qualitativo superior” com esta interação, porque “recolher uma boa história clínica” é importante para a prática médica, enfatiza.
O psicólogo reforça que transmitir uma má notícia exige competências específicas, mas é também importante saber comunicar para promover mudanças de comportamento. Paulo Vitória dá o exemplo das diferentes formas de dizer à pessoa que tem de deixar de fumar, moderar o consumo do álcool ou gerir o stress e que a abordagem pode fazer a diferença na motivação e em como se pode ser produtor de uma mudança.
“O mesmo cenário não se comunica da mesma maneira a diferentes pessoas”, declara Paulo Vitória, com a certeza de que esta formação “vai desenvolver a componente de ensino-aprendizagem e depois da avaliação”, com o contributo destes doentes simulados.