Saiu de Verdelhos ainda criança para servir numa casa em Lisboa, depois regressou à Covilhã, para encontrar maior liberdade durante o tempo em que foi operária têxtil, até emigrar, durante 50 anos. Fernanda Lourenço, 80 anos, sabe o que é viver fora do país de origem, a importância da integração e equaciona participar no projeto Urdidura, que pretende pôr em contacto reformados das fábricas de lanifícios e imigrantes que agora trabalham nelas.
A angolana Zulmira Monteiro, 35 anos, trabalha há dois na ultimação da Fábrica Paulo de Oliveira, na Boidobra, e foi a primeira negra na sua seção. Com Aurora, de três meses, ao colo, não sabe se terá disponibilidade para se envolver na iniciativa, que elogia, por considerar que “ouvir as experiências de cada um pode levar a uma maior compreensão do outro e, através do conhecimento mútuo, dar maior importância a quem está à volta”.
Numa fase embrionária, o Urdidura tenciona, com o apoio de vários parceiros, pôr em contacto reformados e imigrantes, 15% da atual força de trabalho do Grupo Paulo de Oliveira, num exercício de troca de memórias e criação artística, com o intuito de criar empatia.
Depois de se formar um grupo de 15 reformados e de 15 operários imigrantes, primeiro vão ter sessões separadas, de seguida em conjunto, para momentos de escuta das vivências de cada um e, de seguida, utilizar as histórias de cada um para criar guiões e fazer curtas-metragens que possam ser disseminadas e espalhem uma mensagem de solidariedade, integração e empatia.
“Este é um projeto de encontros”, realça a coordenadora do projeto, Marisa Marques, da Beira Serra. “É um trabalho de guardar memórias através da arte participativa, com as pessoas”, acrescenta a responsável, que destaca o objetivo de, por esta via, se alcançar a inclusão social com um trabalho artístico.
O projeto, escolhido entre 87 candidaturas, tem financiamento para um ano, no final do qual são apresentados três filmes com base em histórias reais feitos pelos participantes, com o apoio da equipa artística multidisciplinar que os acompanha, das áreas do cinema, dramaturgia, performance, teatro e ciências sociais. Após esta fase-piloto, e caso se perceba que se conseguiu o entrosamento desejado na comunidade, seguem-se mais dois anos e a criação de seis curtas-metragens, veículo para chegar a mais gente.
“No final, queremos ter pelo menos 26 pessoas capacitadas como agentes de luta contra o racismo e a xenofobia na nossa comunidade”, reforça Marisa Marques.
Segundo a responsável, “se os imigrantes que chegam, se os reformados perceberem o que é isto de ser cidadão e de respeitar, já não teremos problemas de ódio, de xenofobia que hoje temos muito presente”.
Problemas que a angolana Zulmira já sentiu várias vezes, com comentários que vai ouvindo em diferentes circunstâncias e que faz por ignorar.
Fernanda Lourenço viveu 50 anos em França, onde rumou quando saiu da Lanofabril. Garante nunca ter sida olhada de lado por ser estrangeira e acentua a importância de quem chega se moldar aos hábitos locais, para não chocar com eles, como a própria, e para facilitar a adaptação, sem ter de se descaraterizar.
“Não é fácil ser emigrante. É preciso coragem para deixar o país, ter outras ambições. Alguns destes que chegam são de países que estão em guerra. Parece-me que este projeto pode ajudar na integração”, avalia Fernanda, a viver no Teixoso, e que nos últimos anos encontrou nas oficinas de teatro para seniores a oportunidade de viver experiências do que tinha sido antes a sua vida.
Os responsáveis acreditam que a Urdidura tem o potencial criativo e transformador da dramaturgia no encontro entre operários imigrantes e reformados do setor.
“Os novos que estão a chegar têm os mesmos problemas que os nossos que foram para França, e temos a obrigação de os integrar. Aqui vamos utilizar a arte para contribuirmos para uma sociedade mais justa”, enfatiza Marco Gabriel, coordenador da associação de desenvolvimento Beira Serra, promotora do projeto.
Com este encontro, entre quem chegou há pouco às fábricas vindos de outras geografias, outras culturas, e quem passou uma vida inteira entre maquinaria têxtil, pretende-se um entrelaçar de fios de origens diferentes num mesmo tear, criando um tecido mais forte e harmonioso.
Uns são fios ainda com pontas soltas, à procura de serem entrelaçados e ganharem um sentimento de pertença, enquanto outros, mestres das texturas e cores na fábrica, podem ajudar a tecer uma nova identidade na comunidade e a refrescar o tecido social, criando um material mais robusto com o cruzamento da diferença.
É o que está no horizonte, quando houver convívio, partilha, trabalho em conjunto e o resultado dessa troca estiver vertido numa tela. Que fios novos e antigos se sustentem mutuamente e tragam outros para a mesma teia.
Para Regina Gouveia, vereadora com o pelouro da cultura e da Ação Social na Câmara da Covilhã, outro dos parceiros, esta ação é também “salvaguarda de património imaterial” e, além de integrar, tem também a dimensão de valorização do trabalho na fábrica, assim como “pode ser uma espécie de catarse para alguns”, ao falarem nas suas experiências.
“É um elo por via do trabalho. O que traz e o que levam. Fazer este laço com as pessoas do território acho que vai trazer muito a quem está envolvida, e não só”, vaticina Catarina Sales, representante da Universidade da Beira Interior.
Sílvia Ferreira, da associação de artes performativas Quarta Parede, explicou que, da partilha de experiências e vivências, vão ser construídas novas histórias, a partir das quais serão criados os guiões que darão origem às curtas-metragens que vão circular pelo país e “dar projeção aos objetivos sociais e artísticos”, realçando o aspeto do diálogo com a comunidade em geral, através da rede de parceiros, que inclui a Associação de Reformados do Tortosendo.
O realizador, João Dias, descreve que este vai ser “um mergulho nas memórias dos trabalhadores” e um trabalho feito a partir de relatos reais, encaminhando o que daí resultar para um objeto cinematográfico.
Em fevereiro, para apresentar o projeto, foi feita uma sessão de cinema na Fábrica Paulo de Oliveira.
A iniciativa é financiada pelo programa PARTIS & Art For Change, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian e a Fundação “la Caixa” e o Município da Covilhã.